Retalhados, porém intactos.

Ele estava assistindo um filme de luta na tevê, sem nada melhor para fazer. Já era tarde e o sono começava a bater quando, de repente, seu celular tocou. Era ela… nem ele sabia, mas ainda tinha o número dela registrado na agenda do telefone, apesar de não receber nenhuma chamada sua há anos. Anos mesmo.

Ela arriscou ligar para o número dele, sem muitas expectativas. Imaginou que fosse uma das únicas pessoas que consegue manter o mesmo número durante tanto tempo. Por isso cedeu despreocupada ao seu impulso e ligou tarde da noite, acreditando que não daria em nada mesmo, mas com uma esperança tímida escondida no canto da alma.

Pelo visto ela não era a única que fazia questão de manter certas coisas. Aliás, essa não era a única coisa que os dois mantinham intactos. Tanto que o coração dele, quando viu o nome dela no visor, começou a bater tão acelerado quanto o dela quando viu que estava chamando…

Ele sentiu vontade de atender falando o nome dela, mas temeu que pudesse ser um engano, ou sei lá o que, e só disse:

– Alô?
– Alô… Nando?
– Clara?
– Meu Deus… é você! Desculpa te ligar tão tarde, é que…
– Tudo bem, eu continuo com problemas de insônia… é ótimo ouvir a sua voz de novo, sabia?
– É muito bom falar com você também. Eu sei que prometi não te procurar, mas hoje…
– Eu quis te procurar muitas vezes, só que…
– Sofri um acidente, Nando. Quase morri.
– Meu Deus! Como isso aconteceu? Como você tá?
– Tô bem agora. Não vou morrer, quero dizer, pelo menos não agora. Mas tô apavorada.
– Mas o que houve, afinal? Me fala, por favor… tá me assustando.
– Fui atropelada há alguns dias. Quebrei alguns ossos e bati com a cabeça, fiquei desacordada por mais de um dia, e quando recuperei os sentidos não lembrava de nada do acidente, e ainda não lembro, mas desde então tenho pensado em você com fixação, por isso quebrei a promessa.
– Puxa, Clara, sinto tanto por isso… de verdade. Gostaria de estar aí para te abraçar agora, para ver de perto como você está.
– Você não ia gostar de ver como está o meu rosto. Quebrei o nariz em cinco lugares, inclusive. Mas o médico disse que vou voltar ao normal, e isso me encorajou a te procurar.
– Mas o que é isso? Você acha que eu deixaria de querer te ver se o seu rosto estivesse desfigurado? Francamente…
– Então vem…

Silêncio.

– Você sabe que…
– Eu sei… apesar de não parecer, eu tenho noção do que estou te pedindo.
– Pois é… eu adoraria te ver de novo, especialmente agora que você tá passando por isso, mas…
– Eu sei Nando, eu sei… você não pode, eu não posso. E nós estamos há centenas de quilômetros de distância. Existe um verdadeiro abismo entre nós. Mas é que quando eu pensei que fosse morrer, só consegui pensar em você, e fiquei apavorada com a ideia de não poder te ver nunca mais.
– Clara, eu…
– Nando, eu nunca tive pensamentos suicidas, você sabe, mas confesso que cheguei a pensar que teria sido mais fácil se eu tivesse morrido, mas aí eu lembrei das coisas que eu ainda quero fazer, e no topo da minha lista está você. Preciso te ver mais uma vez. Foi essa vontade que me deu forças para viver, tenho certeza.
– Clara, não fala mais nada.

Ele desligou o telefone apressado, comovido, emocionado, com o coração de Clara nas suas mãos, segurou-o com cuidado, sabendo exatamente o que devia – mas não podia – fazer.

Bastou uma ligação. Um toque. Uma verdade dolorosa. Um incidente. Um acidente. O calafrio da morte que não matou, ao contrário, ressuscitou dois corações.

Roberta Simoni

11 comentários sobre “Retalhados, porém intactos.

  1. Beta, voce tá com aquela porra de talento chato de escritores fodas que são capazes de fazer, nas 3 primeiras linhas, o leitor se prender até o ultimo ponto do texto…e esperar por mais, porque me deu MUITA vontade de saber o que fez com que eles se afastassem. E ainda quero…portanto, se vire…já estou esperando “Retalhos, porém intactos – o inicio do fim” rsrss

    Parabens é pouco!

    Beijinho

    Igor André
    ordemincaos.blogspot.com
    Post Recente: Snap – Arrebentando as Pulseiras

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  2. Amiga vc tá foda hein?? Escrevendo cada vez melhooooor!!!!
    Orgulhoooooooooooooooooooo…
    Esse ”Retalhos, porém intactos” vai ter que ter continuação, eu preciso saber o que aconteceu com a Clara e o Nando no passado e no fututo….hehe.
    Tô aguardando ansiosa.
    Bjos e te amoooo

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  3. “Bastou uma ligação. Um toque. Uma verdade dolorosa. Um incidente. Um acidente. O calafrio da morte que não matou, ao contrário, ressuscitou dois corações.” Phoda ! nada + a comentar … rs.

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  4. “Clara, não fala mais nada.” Fiquei aqui pensando: Nando tem medo ou pressa? Ele correu dela ou correu para ela? Isso me fez querer saber mais sobre os dois personagens.

    Oi Beta,
    Henrique (aspirante a roteirista), tudo bem? Vi seu link no gmail.
    Gostei daqui. Ah vejo sua fluidez com os diálogos.
    Bj

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  5. Oi!
    Voltando hoje de férias, resolvi colocar as leituras em dia, há muito tempo que não leio seus textos Beta, e estava com saudades…vou nesse comentário falar por todos os últimos que li, ótimos como sempre.

    Pô, história fantástica, seria mais gostoso um mundo onde as pessoas tivessem a coragem da Clara em viver aquilo que acreditam de coração, mesmo quando o tempo diz que não dá mais.

    Bjos.

    PS: mil coisas para 2010, a primeira delas foi cortar as mil atividades para me dedicar mais a coisas simples que gosto, como literatura e música, então, aguarde… 🙂

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  6. Muito interessante, mas é apelativo. Todo mundo aos vinte e poucos anos já tem aquele alguém que se o mundo fosse acabar amanhã iria ao menos ligar para dizer que recordou com ternura daquela vez que ensaiaram passos no corredor do prédio, riram bêbados na rua ou situações afins. Um tema desse prende a atenção facilmente pelo teor emocional, mas, ainda assim, fica evidente o seu dom para a escrita. Parabéns.

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  7. Eu juro que gostaria de dizer alguma coisa, mas sinceramente, Beta, vc invadiu o meu ser com esse texto e extraiu todos os pensamentos, sentimentos, sensações, emoções… parece que tudo o que eu poderia dizer ou citar sobre, foi sugado (no bom sentido da palavra, é claro, por vc). Não há o que dizer… parece que me vi há anos atrás, um misto de saudade, indentificação e cumplicidade com esse texto, que diga-se de passagem, é perfeito!

    Como sempre, vc escreve com uma métrica tão bonita que não há como não se apaixonar pelos seus textos.

    Um beijo! Um abraço apertado!

    Saudade!

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