O inferno são os outros

O cheiro da pólvora ao riscar o fósforo. A água fervendo no fogão velho. O café com açúcar. As ruas ainda vazias. Os pés pisando em folhas secas. O primeiro raio de sol batendo no rosto gelado na manhã de inverno. A música tocando nos fones da alma. O cachorro de rua abanando o rabo. O plástico bolha. A palavra escrita. O gosto da Nutella no pão dormido. Os sonhos de quem não dormiu ainda acordados. As angústias dormindo até mais tarde. Meus dilemas sonolentos e silenciosos até agora. O banho quente e demorado antes de ir para o trabalho: de todas as minúsculas felicidades do meu dia, nenhuma até agora inclui pessoas.

Vejam bem, apesar de parecer, não sou leviana… assumo que muitas das minhas alegrias são provocadas por outras pessoas… mas as desgraças também.

Sou filha de Paulo Cardoso, sendo assim, não é de se estranhar que eu deseje 100 vezes por dia ir embora, morar numa casinha de pau-a-pique, lá no alto do cerrado, para onde eu levarei a Rosinha depois de tudo arrumado. Só eu, a Rosinha e uns quadros colados na parede com fita durex. E se um dia Rosinha chegar dizendo que quer morar na cidade, eu vendo aquela merda e a Rosinha que se foda, eu vou morar num puteiro.

Morar com a tal Rosinha não é exatamente o que eu desejo para o meu futuro, tampouco num puteiro. Na verdade, eu só estou me apropriando do poeminha infame que eu aprendi com o meu pai, contado (e mal cantado) pelo também infame Ary Toeldo. Mas, o fato é que mandando a mala da Rosinha à merda ou não, querendo morar numa casinha de pau-a-pique ou num puteiro, parece que não há muitas alternativas. No fim, a vida é isso mesmo: um grande puteiro. Todo mundo querendo foder todo mundo, e antes fosse no melhor sentido.

O problema não é a casinha, nem a ingrata da Rosinha. O problema é querer que a Rosinha goste da casinha, é esperar que ela seja grata pelos quadrinhos que o sujeito colou para ela na parede com tanto carinho e alguns metros de fita durex.

Agora pense em várias casinhas com várias Rosinhas dentro. Isso é, basicamente, a sociedade. Tem sempre alguém decepcionando e/ou sendo decepcionado, ferrando ou sendo ferrado na arte (ou desastre?) do convívio.

Quando o ser humano não está ocupado criando expectativas, está criando atritos, conflitos e enormes equívocos. Todo mundo competindo o tempo inteiro para ver quem é o melhor e o mais forte enquanto o que deveria importar mesmo é conseguir ser mais flexível. Competição, inclusive, é uma coisa que nunca vai entrar na minha cabeça. Pra mim, competir só faz sentido se for por medalha olímpica, fora isso, acho desperdício de tempo e energia.

Estão comprando brigas que nem são deles só pelo prazer de brigar. Inventam lorotas, falam abobrinhas, alugam meus ouvidos, mas nunca me pagam o aluguel. Levantam a voz no lugar de melhorar os argumentos. Andam comendo ovo e arrotando caviar, embrulhando o meu estômago e a minha vontade de manter o convívio que, diga-se de passagem, nunca foi lá muito grande.

Seres humanos me atraem e me repelem na mesma medida, peso e proporção. Não por acaso, eu ando pensando excessivamente na Casa do Sol, onde vivia a diva Hilda Hilst, num belo sítio, rodeada por livros e cachorros.

Enquanto isso, eu vivo na cidade, rodeada de gente, ora adorando, ora buscando enlouquecidamente a indicação de saída mais próxima. Ainda sem uma casinha no meio do mato para onde eu possa fugir. No entanto, para o azar dos meus estimados leitores, continuo munida de um computador conectado à internet, bancando a Phina enquanto digitocheia de desaforos na ponta dos dedos.

Roberta Simoni

12 comentários sobre “O inferno são os outros

  1. Muito bom o texto!!! Penso da mesma forma… E ver o quanto as pessoas estão competitivas e o quanto isso leva por água a baixo as relações interpessoais me entristece!!! Hj em dia parece que os filhos não são mais “filhos”, são investimentos… São criados de forma que um dia possam ter retorno financeiro… O dificil é se questionar “será que um dia as pessoas serão menos competitivas?” vendo as crianças terem seu processo de formação sustentado na competitividade!!! Acho que pais e mães que têm o mesmo pensamento que o nosso são o único estopim para essa mudança…

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  2. putz, era tudo q eu queria escrever hoje, quando já deu tudo errado no banco, quando já briguei no saguão do prédio com o síndico, quando pensei em vender tudo e ir morar no meio do mato – mas sim, tinha q ser um mato com internet, e eu munida de um 38tão, o q sem dúvida, acabaria não dando tão certo tbm – com eu atirando até na minha sombra.
    força na peruca, diria a Jac. de qualquer forma como sempre tu entendeu tudo melhor q todo mundo ou ao menos colocou no papel beeeem explicadinho!
    beiJu

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  3. Conheci e convivi com uma pessoa que na sua vida inteira, rogou por uma casinha no campo, onde sua companhia seriam seus livros, que devorava um a cada dia, quase, e ainda era defensora das pessoas serem mais flexíveis ao invés de donas da verdade. Quando de repente, aos 57 anos, se viu amando outra vez, e desta vez não eram os livros, e sim seu ex marido, que depois de 14 anos separados, eles, sem nunca ter perdido o amor, voltaram a se encontrar e se amar. E foi dai então que ela encontrou, os livros, o amor, a casa de pau a pique, motivação pra viver e com uma vida completa, e repleta de realizações passou os últimos dias da vida dela, com total realização. Então, fica a dica! Os livros são ótimos, a casa de pau a pique tb, mas o convívio com as pessoas é que irá te dar esta realização de estar viva. Amei o post. De muitos, este foi o que eu mais gostei. Saudades de ti garota. Beijinhos, Adesfocada.

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  4. Faz tempo q vc não escrevia algo bom assim…rs Um toquezinho de Amelie Poulin e um gostinho de crônica de jornal de domingo.rsrs

    Eu amo quando os seus textos vem transbordando cheiros, luzes e uma atmosfera peculiar.

    Mais uma vez, fiquei orgulhoso pelo resultado do SEU trabalho.

    BNA

    Rei de Copas

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  5. Eu, sinceramente, não sei, se é, a maneira, que, vc escreve, ou se é, a , maneira, que eu, leio…me passem um lenço…ou lençol…
    ( as virgulas são os “ic” dos soluços rsrsrs )
    Beta, vc acaba de em poucas palavras colocar o porquê de “OH MY GOD” nao ter, assim como apertou o botão do big-bam, apertado de novo, reversamente,com a diferença u grau maior no “me atraem”….

    ” Seres humanos me atraem e me repelem na mesma medida ” .

    show este texto, sorri em muitas linhas rsrsrs

    parabéns e que este nosso azar continue indefinidamente

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  6. Voce eh uma linda, Beta! Esse mundo ta meio ao contrario com as pessoas desvirtuadas. E da medo… Muito medo!
    Mas eh melhor acreditar que tudo vai melhorar. No minimo, nos tornaremos pessoas melhores aprendendo a conviver.

    Beijos.

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  7. Beta:
    Como você mesma disse: você é filha de Paulo Cardoso.
    Mais uma vez, não tenho o que tirar nem pôr da sua crônica (?)/desabafo.
    No fim da história da nossa curta passagem por esta vida, sabe o que nós realmente somos (do gari ao Presidente da República: do mais simples operário até Eike Batista) ? Somos umas deliciosas merdas… Vivendo uma deliciosa vida medíocre de merda… Mas poderíamos fazer o Paraíso aqui na Terra se todos amassem uns aos outros !
    Beijos !
    Paulo Cardoso

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  8. Delícia de texto Beta!
    É um desabafo bem (mal) humorado, colocado de uma forma poética (sua) que escancara tudo aquilo que vivemos e não temos coragem de falar. Todos nós nos sentimos assim as vezes, vontade de ter “uma casinha no mato”…
    Você continua afiada!!!
    Beijos com amor e saudade…
    Mamy

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  9. É o segundo texto seu que leio, e que acho muito bom!Como o ser humano é uma incógnita…nos surpreendemos uns com os outros todo o tempo, para o bem e para o mal.Felizmente ainda existem muitas pessoas legais, não perfeitas, porque isso não existe mesmo, mas pessoas boas, que se preocupam com os outros, e em quem se pode confiar.

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