Vô, amanhã faz 5 meses que você foi dessa para melhor, cantou para subir, empacotou, foi ter com as estrelas. Ainda choro semanalmente. Mas é da minha avó a maior cota de lágrimas. Justo! Afinal, foram 56 anos de casados. Ela anda tinhosa e melancólica sem você por aqui. Mas vamos levando. E ela, por enquanto, vai sendo levada pela saudade que sente de você.
Esses dias eu fui ao Patronato para entregar uns documentos seus que precisavam ser enviados para a Itália. Só quando eu estava chegando lá é que me toquei de que eu tinha a sua certidão de óbito nas mãos. Chorei feito criança perdida no meio da rua.
Uma amiga me ensinou que a consciência da morte vem em ondas como o mar. Tipo aquela música, sabe? Ela tem razão. A ficha vai caindo aos poucos mesmo.
Você precisava ter visto o seu velório, vô! De todos os caixões que já vi na vida, o seu foi o mais sofrível. Culpa do auxílio funeral furreca que você escolheu pagar. A única coroa de flores que tinha na sua capela era feita de flores de plástico. Eu estava quase ficando chateada quando te vi dentro daquela caixa que, se não era de papelão, era feita de alguma coisa parecida, muito frágil, coberta de papel madeira, quando me dei conta de que, em vida, se você pudesse ter escolhido todos os detalhes do seu funeral, não teria feito nada diferente. Meu velho pão duro!
Pão duro e bonito. Você foi o morto mais lindo que eu já vi. Juro! Com seus 87 anos, a cabeça grisalha, ainda repleta de cabelos, a pele branquinha, com poucas manchas, as sobrancelhas perfeitas e aquele seu nariz lindo de galã dos anos 60 de pôr inveja em muito vivo por aí.
Você ficaria surpreso de ver quantas pessoas compareceram ao seu ritual de despedida que, cá pra nós, foi tão macabro quanto qualquer outro. Aquelas horas intermináveis velando seu corpo para, no fim, te ver entrando numa cova.
Voce viu quanta gente chorou por você? Bom, se você chegou a aparecer por lá, aposto que foi embora cedo, cansado e entediado. Eventos sociais nunca foram o seu forte. Nem o meu.
Aliás, não sei se você sabe, mas é carnaval aqui embaixo. E quando eu digo “embaixo”, não é só porque eu gosto da ideia infantil de que você está no céu, ou em qualquer lugar acima desse aqui, de onde estou te escrevendo, mas também – e principalmente – porque aqui tá cada vez mais baixo, quente e parecido com o que dizem sobre o inferno.
Esse ano, como de praxe, eu tentei fugir da cidade durante o carnaval. Teria fugido do planeta se pudesse. Mas, na impossibilidade de fuga, fui obrigada a andar pela minha cidade desviando dos montes de lixos e baratas que tomaram conta das ruas. Os garis entraram em greve num momento bastante apropriado. Achei mais do que digno. Mas, como sempre, vai acabar em samba.
Ontem tinha um rapaz comendo uma menina aqui na rua de casa. Você se envergonharia dessa geração. Não só porque a garotada chegou ao ponto de trepar no portão da casa dos outros, mas porque, além de tudo, ele, brocha depois de tantas cervejas, não conseguia nem sequer comer a menina. Só enfiava a mão nela que, de tão bêbada, tentava se equilibrar e levantar a cabeça para não vomitar em cima dele. Imagine você, que se manteve viril, tentando arduamente dar um trato na vó até o último segundo, se prestando a um papelão desses? Não sei se senti mais vergonha por ela ou por ele que, diante da plateia, não conseguiu nem dar no couro. Uma lástima, vô!
Lembra daquilo que eu falava sobre o carnaval e você ria? Então, me diz se eu não estava certa? O que não é o carnaval senão um monte de zumbis fantasiados pelas ruas? Aquele monte de gente anencefálica andando trôpega por aí tentando comer gente. Eu disse tentando.
Roubaram a minha bicicleta hoje. Aquela que eu suei para pagar, lembra? Não, não… não fizeram nada comigo. Eu nem vi a cara do ladrão. Eu estava dentro de casa, e a bicicleta, na minha porta, dentro do condomínio “tranquilo e seguro” onde estou morando. Tranquilo e seguro, vô! Entende? Não existe mais lugar assim no mundo.
Desculpa, mas no momento, não tenho disposição alguma para vestir a minha fantasia de feliz, especialmente no carnaval, que seria todo ano igual se não estivesse pior a cada ano. Também não consigo achar motivos para comemorar coisa alguma agora. Acabo de perceber, inclusive, que não escolhi o melhor dia, tampouco, meu melhor humor, para te escrever. Mas eu precisava te escrever, já adiei demais.
Afora o mundo que parece já ter acabado e ninguém se deu conta, venho travando minhas lutas íntimas que, você sabe, não têm sido poucas nem pequenas. Ao menos, me sinto mais resignada e menos reclamona do que de costume. Estaria eu, finalmente amadurecendo?
Seu bisneto ainda nem completou 3 anos e já fala pelos cotovelos. Tá levado de doer! Ontem eu o vi se estabacando no chão, levantando sozinho e dizendo: “Opa! Caí de maduro!”. Agora, veja você…
É mais ou menos assim que tô me sentindo nessa fase. Caindo de madura. Vendo o mundo com os olhos cansados e caminhando com dificuldade. Só que, pela lógica da vida (se é que ela tem alguma), eu ainda tenho muitos anos e muitos passos pela frente. Preciso encontrar disposição para continuar andando. Aceito sugestões, mas vou fingir que não estou te ouvindo se você também me sugerir entrar para uma academia, combinado? Você sabe muito bem que não é disso que estamos falando aqui. Então não me provoque!
Dia desses, uma de suas sobrinhas italianas me encontrou por essas bandas da internet. Queria saber de você. Como não fui uma boa aluna e enriqueci muito pouco meu vocabulário italiano enquanto podia aprender com você, não encontrei outra maneira de dar a notícia da sua morte senão de forma direta, com as poucas palavras que sei usar: “Scusa, il nonno è morto”.
Ela deve ter me achado uma desalmada mas, você sabe, eu sou só uma ignorante.
Quando precisei dar essa notícia, meses depois da sua morte, foi só mais uma onda. Quando tive que levar seus documentos até o Patronato, outra onda. Agora, enquanto te escrevo, outra. Às vezes, levo uns caixotes quando a onda é muito grande, mas vou sobrevivendo à saudade que sinto de você.
Quando – e se – você puder, mande notícias suas. E caso você tenha a oportunidade de voltar pra cá, por favor, pense bem. Eu não faria isso se fosse você!
Com todo meu amor, receba o meu beijo mais saudoso. Sua neta,
Roberta Simoni
Triste reflexão de um momento doloroso!
A verdade muito bem explicada sem nenhuma máscara, apesar do carnaval.
Beijos com amor, sua eterna fã.
Mamy
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Cara Roberta, compreendo cada palavra dita por você. As ondas vão vindo e, mesmo diante do mar, nos pegam de susto. São necesários uns segundos prá ligar a chave… Senti isso com a morte de meu pai, a quem amo, amei, e nem sabia que tanto amava. Sempre mando-lhe recados…lá prá cima, também; estamos cada vez mais embaixo….bj. a essa neta que soube dividir a alma com seu vô. bjs.
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Eu amaria o seu vô, exatamente como você. Ok, não exatamente, nem tanto, mas certamente amaria.
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Beta, é bom ter a consciência tranquila pelo que pude fazer por ele nos seus últimos meses de vida.
Quero sempre lembrar dele como um bom avô que foi pra vocês. Nunca sequer alterou a voz pra vocês. Ele amava vocês, bem como seus filhos, à maneira dele: sem muitos chamegos, mas sempre carinhoso. Que Deus o tenha em bom lugar.
Papy
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=(
Muita serenidade e aconchego ao seu coração, Beta…
Lidar com a saudade é uma das coisas mais difíceis! Sei bem…
Beijo grande!
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Não gosto das palavras pêsames, me parece derivado de pesado, que peso é cuidar e lembrar de quem amamos ?: Daí prefiro sentimentos, “meus sentimentos Beta e família…” lembro sempre daquela foto do teu pai fazendo a barba dele que você postou aqui. Aí, mesmo que você ache a ideia de céu infantil o engraçado é que infantis temos de ser nós se quisermos estar num estado de coração para estarmos lá. Como começa nossa vida ? Como ela termina ? Como crianças…Um abraço minha escritora favorita. Ainda estou na fila do seu primeiro book falou ? Quando vc ouvir esta música, vc lembra de teu avó…gosto demais destes dois cantores ITALIANOS!! rsrs
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Bem, esqueci de te dizer, digno de teu Vô este belo texto, como sempre, muito sentimento e riso se misturam em nós quando lemos seus textos. Um abraço.
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matou a pau de tão lindo! deu vontade de chorar e gargalhar lendo. demais!!
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