(Des)construção

Imagine que você está vivenciando aqueles instantes de “quase morte” e me diga: no que você acha que pensaria?

Quem já passou por isso e ficou só no quase, sempre volta com alguma história para contar. Há quem diga que viu uma luz, um anjo, Jesus… outros contam que viram o filme de suas vidas passando diante dos seus olhos. Foi mais ou menos assim que aconteceu comigo da primeira vez, quando meu equipamento de mergulho pifou há 22 metros de profundidade e eu fiquei lá, no fundo do mar, sem ar, durante segundos que pareceram horas, assistindo aquele filme sem lógica. Parecia até obra do David Lynch: era bom, mas difícil de acompanhar.

Dessa vez foi diferente… também não vi a luz ou Jesus, mas nem tive a chance de assistir filme surrealista como antes.

Quando você vê seu corpo voando feito um cartoon, não imagina em quantos pedaços ele se partirá ao encontrar o chão novamente, mas torce para que o estrago seja o menor possível. Tudo acontece tão rápido que seu cérebro não consegue acompanhar a velocidade do impacto provocado pela colisão, ele fica flutuando até reencontrar seu corpo e voltar pra ele, te devolvendo os sentidos, o que é bom por um lado, porque significa que sua cabeça não foi atingida, mas é péssimo por outro, porque junto com os sentidos, você recupera a noção de tudo: tempo, espaço, situação e, principalmente, dor.

E aí você se vê atirada no chão, rodeada por curiosos anônimos se perguntando: ela tá viva? quebrou o que? tá sangrando? bateu a cabeça?

90% daquelas pessoas querem saber o que aconteceu com você para chegarem em casa contando sobre o acidente que presenciaram, e – sendo bem otimista com a humanidade – 10% está ali porque realmente quer ajudar de alguma forma.

Um moço apareceu gritando para ninguém mexer em mim e ficou segurando a minha mão até a ambulância chegar. Se é desses anjos que as pessoas se referem, então eu também vi um.

Uma mulher insistia para que eu desse o número de algum parente para ela poder ligar e avisar. E eu insistia em negar. Imaginava meus pais recebendo a notícia, coitados… capaz de eu sobreviver ao acidente e eles morrerem de susto. Nem pensar! Como eu não bati com a cabeça, continuei teimosa como sempre. Só avisaria a alguém caso eu tivesse que ser internada.

Saí de casa para pedalar e, de repente, me vi protagonizando uma cena que sempre me apavorou: atropelamento com direito a platéia lotada. Penso que se, um dia, um público tão interessado quanto aquele que me assistiu agonizar no meio da rua, lotar minhas peças de teatro, eu ficarei muito lisonjeada. Não naquela hora, quando tudo que senti foi medo e vontade de levantar e sair andando normalmente.

Mas não consegui, a pancada foi forte, tive que esperar a ambulância e passar a noite inteira no Miguel Couto em cima de uma maca, tirando chapa até da alma e, à certa altura, assistindo um diálogo insólito entre dois jovens Doutores:

– O que aconteceu com essa moça?

– Atropelamento. Pernas, lombar e costelas atingidas.

– Putz! Logo agora no final do meu plantão!

– É sempre assim… os piores casos chegam quando a gente tá doido pra ir embora.

Me percebendo assustada, enfim, um deles perguntou:

– E aí, moça, tudo bem?

Não contive o sarcasmo:

– Ah, tudo ótimo. Só vim aqui ver o movimento mesmo…

Mais tarde, na sala da radiografia, ainda conseguindo preservar algum senso de humor, apesar da dor, outros dois sujeitos discutiam sobre o que deveriam fazer comigo, reclamando da calça que eu estava vestindo. Resolvi me pronunciar:

– Oi. Eu tô aqui. É só vocês me perguntarem se eu não me importo de vocês abrirem a minha calça. E, não, eu não me importo.

– A senhora não tem um acompanhante?

– Não. Mas eu estou consciente e estou dizendo que tá tudo bem, podem abrir!

– É que o botão e o ziper da calça jeans atrapalham na radiografia…

– Eu entendo e juro que se eu soubesse que me acidentaria ao sair de casa, teria colocado um vestido para facilitar o trabalho de vocês…

Por fim, de volta ao corredor do hospital, depois de 5 longas horas, enquanto eu esperava para receber alta, um bandido algemado e esfaqueado esperava para ser atendido na maca ao lado, um rapaz espancado durante uma briga acabava de chegar desacordado (bem que o plantonista disse…) e o motorista que ultrapassou o sinal vermelho e me atingiu, aparecia se desculpando e perguntando se podia fazer alguma coisa por mim. Deixei que me trouxesse para casa.

Resumo da ópera: nenhuma fratura, uma costela deslocada, uma banda da bunda roxa, um joelho que não quer dobrar, minha lombar que não me deixa dormir, nem sentar ou respirar sem sentir dor há quase uma semana, um corpo inteiro dolorido, revelando regiões que eu sequer sabia que existiam, uma chance de renascer às vésperas do meu aniversário e uma música que não sai da minha cabeça desde então…

Pois. No instante em que fui atingida por um carro, bem na hora do rush, no meio de uma avenida movimentada de uma grande cidade, eu não pensei nas pessoas que amo, no meu cachorro, nas coisas que deixei de fazer e dizer, nos lugares que não tive tempo de conhecer, em Deus, no céu ou no inferno, eu me peguei pensando no Chico cantando: “(…) morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. 

É, eu sou estranha. Quase dissonante até na hora de quase morrer.

Teria sido, no mínimo, frustrante se, além de tudo que não vivi, eu tivesse morrido atrapalhando um monte de gente que ficou presa no trânsito, deixando também de viver um monte de coisa. Além de morta, inconveniente. Francamente…

“(…) E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.” (Chico Buarque)

Roberta Simoni

No fundo são todos Chicos, Tons e Vinícius

Chico Buarque, Tom Jobim e Vinicius de Moraes no Rio, em 1979. (Foto do querido Evandro Teixeira)

A água já estava chegando na altura das minhas canelas, desliguei o chuveiro e interrompi o banho com minha cabeça ainda cheia de espuma, interfonei para o porteiro, que estava ocupado e não podia subir para desentupir meu ralo, não consegui encontrar o telefone do “marido de aluguel”, daí pensei na falta que faz ter um homem por perto, às vezes.

É claro que eu já xinguei a mãe de todos eles, já desejei viver sem, ou melhor, desejei conseguir desejar viver sem eles. Também já julguei todos como iguais, tudo farinha do mesmo saco, flor que não se cheire. Gastei horas falando mal deles com outras mulheres, afinal, essa é a parte mais divertida de todo “Clube da Luluzinha”, é tema recorrente.

Mas a verdade é que na maior parte do tempo eu gosto mesmo é de estar na presença deles.

Desde pequena eu sempre estive rodeada por figuras masculinas, nas reuniões familiares achava mais divertido ficar perto deles, que bebiam, falavam alto, diziam palavrões impressionantes e eram engraçadíssimos, a julgar pelas gargalhadas que ecoavam pela casa quando estavam juntos. As mulheres trocavam receitas, chamavam a atenção das crianças que tentavam se divertir e reclamavam dos maridos enquanto lavavam a louça do jantar. Maldizer os homens é tradição milenar, isso a gente aprende desde pequenininha. Só depois é que vai entender que tradições, quase sempre, são equívocos.

Os homens já nascem com claras vantagens sobre nós, são livres, crescem soltos como gatos. São criados longe da repressão, com menos regras, não escutam discursos enfadonhos sobre o pecado (se escutam, ignoram!) e normalmente desconhecem o significado da palavra culpa porque são fiéis, acima de tudo, às suas próprias vontades. Percebem a leveza de tamanha safadeza?

Não é o que parece. Não estou dizendo que os homens são melhores do que as mulheres. A questão aqui é outra, não é comparativa.

Só não sou do tipo que considera os homens um mal necessário. Eu gosto de tê-los por perto não só quando o meu chuveiro queima ou o meu ralo entope, como agora. Gosto porque sempre aprendo alguma coisa com eles. Quando jogam vídeo game até passarem de fase, por exemplo, demonstram como são perseverantes, e quando assistem futebol são as criaturas mais compenetradas do universo, já repararam? Acho tudo isso lindo, desde que eu não precise disputar atenção com uma televisão, é claro.

Adoro a praticidade deles, a ausência de modos, de frescuras e a maneira quase irritante como simplificam tudo. Acho admirável o senso de orientação que eles possuem, mas acho graça mesmo é do orgulho que sentem de pedir informação quando estão perdidos, e a maneira como mexem nos nossos cabelos sem nunca conseguirem mantê-los no lugar que gostaríamos que ficassem, levando em consideração o tempo que passamos arrumando-os diante do espelho.

Gosto de colocar os meus pés pequenos perto dos pés grandes de um homem e me sentir miúda, de deitar num peito cabeludo e aconchegante e de ter a sensação de que nada de mau pode me acontecer enquanto eu estiver envolvida no abraço daqueles braços compridos.

Admiro a postura segura e corajosa que costumam ter diante de alguma situação de risco, mesmo sabendo que eles estão tão apavorados quanto nós. Gosto de ver como se portam como herois em nossa defesa diante de uma barata.

Eu amo o cheiro deles mesmo quando não passam perfume. Sou viciada nas suas loções e desodorantes e seria capaz de viver morar numa axila masculina. Adoro barba por fazer, feita, mal feita, grande, curta… em suma: adoro o fato de terem barba, independente do estilo que adotam, desde que nunca-jamais-sob-hipótese-alguma deixem de roçar na minha nuca. Mas não há nada que eu adore mais num homem do que as mãos e a maneira como eles manuseiam talheres, volantes, canetas, ferramentas e, principalmente, o meu quadril.

E quando se apaixonam? Homem apaixonado é coisa linda – e engraçada – de se assistir e de sentir. Viram poetas, fazem rima, prosa e amor até de madrugada. Ficam assustados quando se descobrem românticos, tentam disfarçar, mas raramente são bem sucedidos na tentativa. Ficam tolos, bobos, voltam a ser meninos. Deixam a gente fazer o que bem entender deles. Homens apaixonados resultam em homens apaixonantes, como esses Chicos, Tons e Vinícius.

Isso sem falar que eles têm a peça-chave do encaixe que, quando bem utilizada, nos fazem amá-los como se fossem dois seres independentes um do outro, mas que queremos sempre em um só.

Acho engraçado como quando, não raro, sou a única mulher numa roda de homens e, a certa altura, um deles se desculpa pelo vocabulário esdrúxulo, como se me ofendesse. Nunca me choquei com a liberdade da conversa masculina. Talvez porque mesmo tendo as unhas pintadas com esmalte cor-de-rosa e usando sapatilhas de boneca, eu me sinta tão livre quanto eles, embora eu não seja.

Eu gosto do tato e da falta de tato masculina. Gosto mais do tato, é verdade. Verdade também que já reclamei e sigo reclamando da falta de sensibilidade deles. Que mal tem eu querer que o sujeito tenha pegada forte e seja delicado comigo ao mesmo tempo ou na mesma medida e proporção?

Nunca me esqueço de um dia em que eu estava chorando de soluçar por conta de um desafeto e um amigo me levantou, me puxando pelo braço, ergueu minha cabeça e me disse: “seja macho, engole o choro agora!”. E não é que eu engoli? E, antes que eu morresse desidratada, comecei a rir. Nós, mulheres, temos um talento nato para o drama e algumas vezes precisamos adotar uma postura mais pragmática pra controlar o instinto teatral, mesmo assim, ainda temos a TPM para colocar a culpa. Mas eles que não ousem colocar culpa na nossa TPM.

E essa é mais uma razão que me faz amar os homens: eles não têm TPM, embora alguns se comportem como se menstruassem mais vezes no mês do que eu. Mas eu tô falando de homem de verdade, do tipo que não sabe a diferença entre calçados scarpin e antonella, menos ainda entre culote e celulite; que não tá nem aí se o seu cabelo estiver encaracolado ou esticado com escova marroquina, japonesa ou uma estrangeira dessas qualquer; se suas unhas estiverem pintadas ou não; se suas calças estiverem passadas, engomadas ou amarrotadas. Ele sempre vai preferir que você esteja sem calças perto dele.

Eu amei verdadeiramente os homens que passaram pela minha vida, cada um a seu modo. O que ficou de cada relação (seja paternal, amorosa ou de amizade) foi uma enorme gratidão pelo amor que me deram, mesmo os que me amaram da maneira mais torta e equivocada. Decerto eles tentaram ser os Chicos, Tons e Vinícius da minha vida e, de certa forma, eles foram.

Mas, Bossa Nova à parte, continuo em apuros com o ralo do meu banheiro… homens?

Roberta Simoni

Pra ver a banda passar…

Eu, por Amaro Lima

E quando, no meio de um tempestuoso dia de sol, você se pega observando o mundo enquanto deveria estar se abrigando da chuva de problemas que resolveram cair sobre a sua cabeça, você entende que molhar-se pode ser melhor do que correr para comprar um guarda-chuva ou se proteger debaixo da marquise mais próxima.

Tenho tido dias tão insanos quanto eu. Correndo de um lado pro outro, trabalhando feito louca para, no fim do dia, poder riscar mais uma pendência no meu caderno. Às vezes eu consigo. Outras vezes eu como. Há vestígios de páscoa por toda a casa. Mas têm dias em que nem chocolate resolve. Em dias assim, há aqueles que me salvam das frustrações desse “mundo cruel”, mesmo sem saber que são salvadores. E foi enquanto eu esperava a heroína do dia chegar, na saída do metrô, que eu parei – pela primeira vez em dias – pra ver a banda passar.

A banda passou, cantando coisas de amor. Mas ninguém dançou. Ninguém ouviu a banda tocar, todo mundo estava falando ao celular. Mulheres andando apressadas, executivas montadas em seus saltos altos. Homens olhando pra baixo, sisudos de terno e gravata. Todos com ar de cansaço, carregando o peso da existência nas costas. Indo e vindo da rotina, ou do trabalho. Nenhum sorriso detectado. E eu ali, parada, observado a banda passar e, logo atrás, o bando surdo e apático.

E o que fazer com a incômoda verdade de que tantas vezes eu estou marchando com o bando sem ouvir a banca tocar nem vê-la passar?

Eu corro pra chuva e me molho, pra lembrar que não sou feita de matéria impermeável.

Roberta Simoni

Calcinha Velha

Calcinha

Saí do banho, abri a minha gaveta de calcinhas e vi aquela minha adorável calcinha velha. Por que eu ainda uso esse troço? – me perguntei. Ora… porque ela é a mais confortável de todas!

Toda mulher tem uma calcinha de “estimação”, aquela que passa mais tempo estendida no varal do que dentro da gaveta. Peguei a calcinha para jogá-la fora de uma vez, mas voltei atrás… Não! Ela ainda não estava pronta para se aposentar. Lembrei da canção Ciranda da Bailarina do Chico Buarque e me senti compreendida. Era o apoio que eu precisava para prolongar o tempo de vida daquela lingerie idosa, que já foi tão formosa, um dia.

Guardei a senhora calcinha de respeito de volta na gaveta e botei a música do Chico para tocar e, como sempre, fiquei rindo sozinha. Eu posso ouvir essa música centenas de vezes que ela sempre vai me fazer rir. Adoro escutar cada impureza da canção, tratada com tamanha pureza. Lembro das minhas impurezas físicas e humanas e acho graça de todas, pelo menos enquanto a música toca…

Ciranda da Bailarina (Chico Buarque)

“Procurando bem, todo mundo tem pereba,
Marca de bexiga ou vacina
E tem piriri, tem lombriga, tem ameba.
Só a bailarina que não tem.
E não tem coceira, verruga nem frieira,
Nem falta de maneira ela não tem.

Futucando bem, todo mundo tem piolho
Ou tem cheiro de creolina
Todo mundo tem um irmão meio zarolho.
Só a bailarina que não tem.
Nem unha encardida, nem dente com comida,
Nem casca de ferida ela não tem.

Não livra ninguém, todo mundo tem remela
Quando acorda às seis da matina.
Teve escarlatina ou tem febre amarela.
Só a bailarina que não tem.
Medo de subir, gente!
Medo de cair, gente!
Medo de vertigem, quem não tem?

Confessando bem todo mundo faz pecado
Logo assim que a missa termina.
Todo mundo tem um primeiro namorado.
Só a bailarina que não tem.
Sujo atrás da orelha, bigode de groselha,
Calcinha um pouco velha ela não tem.

O padre também pode até ficar vermelho
Se o vento levanta a batina.
Reparando bem, todo mundo tem pentelho.
Só a bailarina que não tem.
Sala sem mobília, goteira na vasilha,
Problema na família, quem não tem?

Procurando bem, todo mundo tem…”

Tadinha da balairina, só ela não tem… mas você eu aposto que tem, não tem???

Roberta Simoni