Sensível demais?

Eu faço drama. Olhando assim, nem parece, mas eu perco facinho o tesão na interação com quem não fala comigo na moral, na moralzinha. Detectei modulação no tom de voz, comunicação de textura áspera, palavras com camadas espessas? Parei, na hora. Não entro numa. Como boa carangueija que sou, reajo me fechando na concha. Meus pais me ensinaram a tratar todo mundo com a maior finesse e se não rola reciprocidade no trato, cabô o papo. Mas me garantiram que isso é fazer drama. O certo mesmo é ficar de boa com quem não é cauteloso com o jeito de falar com os outros. O problema é a hipersensibilidade do receptor, e não a falta de tato do transmissor da mensagem.

O mundo tá tentando me convencer que ser sensível é um defeito, e, depois de refletir muito a respeito, eu conclui que a sensibilidade só é considerada uma falha por aqueles que não possuem o mesmo traço na personalidade. Ser sensível também não é qualidade, é apenas uma característica de quem é receptivo à impressões sensoriais.

Um diálogo entre dois sensíveis se dá assim: ambos são empáticos aos sentimentos compartilhados. Um diálogo entre opostos normalmente termina com o insensível achando o sensível melindroso ou dramático demais e o sensível decidindo que o seu interlocutor foi indelicado. Agora, uma conversa entre dois insensíveis, não sei bem como funciona, pois não tenho parte nisso, mas deve ser bem mais prática. Ou mais perigosa.

Eu tive um chefe que me disse que tinha que ter muito cuidado com a forma como falava comigo porque percebeu que eu era “sensível demais”. Eu respondi que, na verdade, ele tinha que medir as palavras comigo porque eu era forte o suficiente para reagir às grosserias dele e não admitia ser desrespeitada. Pelo menos ali, naquela ocasião, as definições de sensibilidade foram atualizadas com sucesso.

As pessoas, sobretudo os homens, confundem sensibilidade com fragilidade. A verdade é que quanto mais sensível você é, mais te consideram difícil de conviver, não só porque você tem uma reação pra tudo (boa ou ruim), mas porque elas têm que pensar duas vezes antes de falar, porque precisam ponderar e medir as palavras antes de cuspi-las. Mais do que chato, isso é trabalhoso demais. E ninguém quer ter trabalho. Manutenção de qualquer tipo de relação despende muita energia.

Eu sou intolerante à desrespeito, ingratidão e lactose, mas até agora só descobri como evitar o leite mesmo. Os outros ainda me causam uma baita indigestão.

“Quanto mimimi!” – quase posso ouvir o pensamento de um insensível enquanto lê esse texto.

Sabe qual é a tradução para “mimimi”? Tudo aquilo que dói no outro e não afeta você é mimimi.

Cê num imagina a vergonha que eu tenho de lembrar que eu já chamei de mimimi (e ainda fiz vozinha irônica e careta na hora de falar) os dilemas alheios, até entender que têm coisas que doem mais nos outros do que em mim e vice-versa. Eu também já cometi a indelicadeza de dimensionar o problema do outro comparando ao meu. Esse erro eu ainda preciso me vigiar pra não cometer quando me distraio.

Sabe quando eu sou bem dramática? Na hora de ir ao supermercado porque pra acho essa função um suplício, ou pra ir pro médico, mesmo quando eu tô cheia de dor. Faço drama pra ligar pra operadora do celular, do cartão de crédito ou pra qualquer tipo de estabelecimento. Transformo a maioria das ações práticas do dia a dia em um bicho de sete cabeças. Sou péssima com burocracias e pra lidar com pessoas – pasme! – insensíveis. Vivo dizendo que “a morte é mais suave” do que ter que fazer qualquer uma dessas tarefas. Drama Queen. Tem nem como me defender. Agora, quando eu estou falando sobre aquilo que estou sentindo, não chama de drama, não.

E já que eu tô pistola, vou mandar um recado: é melhor pensar bem antes de reduzir o que eu sinto ou invalidar o que eu digo me “acusando” de ser canceriana. Senão, senão… eu vou chorar, rsrs.

Brincadeira! Eu só vou mandar você se foder mesmo (ainda bem que você não vai se ofender, porque ofensa é coisa de gente dramática, né?!)

Roberta Simoni

Uma carta ao passado

Querida Beta,

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Você está com 11 anos agora. Ainda não sabe, mas esse braço quebrado aí vai te trazer mais dores além daquela que você sentiu quando sua mãe, tio Carlinhos e os enfermeiros tiverem que te segurar pro médico colocar seu osso exposto no lugar. Foi um dia horrível, né? Mas preciso te preparar para o que ainda está por vir: o osso não vai colar e você vai precisar fazer cirurgias, fisioterapia e aprender a escrever e a limpar a bunda com a mão esquerda.

Sorte nossa ter uma família tão incrível, que vai nos ajudar a passar por tudo isso. Na escola, os meninos vão se referir a você como “a baixinha-gordinha-de-braço-quebrado” e isso vai te aborrecer, mas não liga, não. Daqui a uns três anos você vai ficar tão gata que esses mesmos meninos vão fazer de tudo pra te conquistar. E você, é claro, vai dar o toco em todos eles.

Aos 13, você vai começar a trabalhar e nunca mais vai parar. Vai conseguir juntar um trocado e sairá de Cabo Frio aos 18. Lembra quando você brincava de casinha e sonhava em morar sozinha na cidade grande? Você vai conseguir, garota! Aliás, você vai viajar bastante e morar em muitos lugares. Ao longo desses 35 anos você vai se mudar 21 vezes. Não é incrível? Cansativo também, eu sei, mas imagina só quantos lares você vai poder decorar?!

Você vai virar jornalista. Depois, fotógrafa. Vai ter uma máquina só sua e vai fazer trabalhos lindos, mas vai cansar dessa profissão depois de alguns anos e vai estudar pra ser roteirista. Sabe o que é isso? É uma pessoa que escreve histórias. Isso mesmo, você vai poder criar vários mundos através das palavras. Vai lançar um livro, vai trabalhar na rádio, no jornal e na TV e vai virar dramaturga… aquela pessoa que escreve peças de teatro, sabe? Mas não se empolga muito, porque você não vai ser famosa e só vai ganhar dinheiro suficiente pra se sustentar, o que já é uma baita conquista.

Eu sei que isso pode te chocar, mas até hoje eu não tenho um carro, nem uma casa. Ah, e eu não casei, só morei junto, mas foi uma derrota. Fica tranquila, porque eu ainda não tive um filho. Mas eu tenho uma cã linda chamada Wilma. Sim, o mesmo nome da nossa tia-avó. É uma homenagem a ela, que vai partir daqui a uns 15 anos, mais ou menos. Aproveita e enche ela de beijos enquanto ainda pode.

Você vai se apaixonar muitas vezes, vai ter seu coração partido e colado com durepox, mas vai sobreviver, calma. E vai viver momentos extraordinários e fazer amizades inacreditáveis de tão maravilhosas. Vai beijar meninos e meninas, tipo na música do Renato Russo que você adora. Daqui a 20 anos você vai viajar sozinha, primeiro pra Itália, depois pra um monte de outros países. Aliás, preciso te pedir um favor: não mata as aulas de inglês! Você não imagina quanta vergonha vai me poupar de passar se você se dedicar a aprender essa língua. Eu já fiquei perdida numa estação de trem na Bélgica gritando “Help, I’m lost!”, daí os belgas vieram me socorrer e eu não consegui explicar pra onde estava tentando ir… tá rindo, né? Parece engraçado agora, mas na hora deu até caganeira de tanto nervoso.

Você vai descobrir que tem depressão lá pelos 28 anos, e por mais difícil que seja, toda essa angústia e melancolia que você sente vão passar a fazer sentido depois desse diagnóstico. Sim, a gente toma remédio controlado todos os dias pra suportar viver nesse mundo. Mas são coisas da vida, meu bem. Não fica triste.

Ah, você não é adotiva, tá? Não acredita? Eu posso provar. Chega perto de papai agora e olha os pés dele. Olhou? São idênticos aos nossos, viu? Os dedos completamente tortos. Mas, pensa: eles funcionam, é isso que importa! Para de ficar se escondendo em calçados fechados. Aliás, o quanto antes você aceitar suas imperfeições e se livrar de tudo que te aperta ou te cobre demais, melhor. Você vai chegar até a perder a dignidade numa noite de bebedeira, mas a barriga, nunca.

Se eu te contar que mesmo assim você vai pedalar pelada numa manifestação nas ruas do Rio de Janeiro, você acredita? Hahahaha! Menina, eu fiz isso pra poder contar pros nossos netos um dia, mas como ainda não tivemos filhos, tô adorando poder contar pra você. Queria ver a sua cara agora!

Eu tenho tanta, mas tanta coisa pra te contar. Vou tentar te escrever todo ano, tá bem? Essa primeira carta está chegando agora graças aos meus alunos, que me inspiraram (demais a gente ter alunos, né, Betinha?). Eu os ajudo a escreverem textos criativos e eles me ajudaram a lembrar de você.

Agora, vá brincar com a sua irmã e suas primas. Pode entrar no rio com saco plástico no braço sem medo. Vai molhar de qualquer jeito, mas não importa, porque esse gesso não vai resolver nada mesmo.

Aproveita Sana por mim. Mesmo depois de tantos anos, esse continua sendo um dos nossos lugares favoritos no mundo todinho. A próxima vez que você estiver aí, já vai ter energia elétrica, sabia? Então larga o minigame e vá olhar as estrelas. Ah, e pede pra tio Paulinho tocar Vander Lee no violão. Ele não vai entender nada agora, mas um dia vai achar que você tem o dom de prever o futuro. E você tem mesmo. Mas não conta pra ninguém. Segredo nosso, tá bom?

Quanto à fratura exposta no braço, tenha em mente que ela não é nada perto das fraturas que você vai sofrer nos próximos anos, só que na alma. Mas eu estarei contigo, prometo. E o nosso anjo da guarda também. Te falo dele numa próxima carta. Estamos nos conhecendo melhor agora, mas já te adianto que ele é um cara fenomenal e ele te adora e te acha uma menina fantástica, e você é mesmo, apesar de todo o trabalho que dá pra ele.

Até breve, amor da minha vida!

Roberta Simoni

A Refinada Sutileza do Ser

Eu não sou sutil. Mas gostaria de ser. Eu nunca tenho uma história para contar onde eu sutilmente disse alguma verdade a alguém. Ou onde eu sutilmente conquistei alguma coisa. Aqui é tudo no suor ou na objetividade. Eu não deixo a entender. Esclareço, e transpareço.

Tem uma franqueza desconcertante imbuída de uma certa agressividade nesse comportamento que me incomoda. Se você tem intimidade comigo e está lendo isso agora, certamente tá concordando com a cabeça. Talvez você releve porque enxerga outras qualidades em mim, ou porque me ama. De todo modo, é nobre da sua parte.

Papai nunca foi de cobrar que eu tirasse as melhores notas na escola, no entanto, exigia que eu fosse muito educada na vida. Ele não me ensinou a me comportar como uma lady (embora tenha tentado isso também, claramente sem sucesso), mas me ensinou a cumprimentar o motorista do ônibus, o moço da portaria, a agradecer às pessoas que me servem qualquer coisa, inclusive quando estão sendo pagas pelo serviço. Ah… e a pedir desculpas, até quando não há culpados.

Se ele não tivesse sido tão rigoroso, eu poderia ter me tornado uma pessoa pouco agradável. Mamãe já me confessou que eu tinha um gênio tão ruim (dizer que meu gênio era “forte” seria apenas um eufemismo), que ela morria de medo de eu me tornar uma adulta insuportável. Acho que me tornei só irritante.

Gratidão, pai e mãe, por todos os castigos (sem direito a gibi da Turma da Mônica quando a malcriação era feia). Vocês poderiam ter sido os primeiros a desistirem de mim, mas não foram. Depois veio mais gente que relevou e ficou. Sempre há de se relevar alguma coisa nas pessoas se a gente não quiser que elas montem residência fixa no nosso passado.

Se eu estiver inclinada a deixar alguém se mudar pro meu passado, não vou acomodá-lo num cômodo escuro, sem saber o motivo. Eu não sou do tipo que provoca aquela sensação angustiante de “mas o que eu fiz?”. Tem isso de bom! Sou mais do tipo impiedosa que deixa o outro se perguntando: “o que eu faço com isso que ela me disse agora?”. Tem isso de ruim.

Como é ser sutil? Uma pessoa, pra ser sutil, precisa confiar muito na capacidade intelectual e cognitiva do seu interlocutor, caso contrário, como ela dorme à noite sem saber se transmitiu seu recado com clareza?

Sutileza é diferente de sensibilidade, essa eu tenho em porções exageradas, como a minha tia viciada em comprar amaciante mesmo com a dispensa lotada. Sutileza tem mais a ver com gentileza. Ser sutil no trato é uma forma de ser gentil. A sutileza é uma característica de pessoas macias. Eu adoro pessoas macias. Elas sabem como e quando falar, são ponderadas e pegam leve. São indispensáveis como os amaciantes pra lavagem de roupa suja. Eu tô mais pra sabão em pó.

A vida não me ensinou a ser sutil. Mas eu quero aprender. Tem tanta coisa que eu aprendi de um jeito e depois descobri que era melhor fazer de outro: embreagem depois do freio, pílula antes do sexo, admitir o erro antes de ser acusada… até intercalar água com bebida alcoólica eu aprendi, como é que eu não vou aprender a arte da sutileza?

Tenho, inclusive, notado uma melhora bem sutil no meu comportamento com a adição de um ingrediente muito básico, porém escasso: a empatia. Se você não tiver em casa, não tem problema. Pode substituir por compaixão, me disseram as pessoas macias. E tudo isso – pasme! – sem dizer nada.

Roberta Simoni

Donas das Divinas Tetas

“(…) Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas”

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A primeira vez que eu vi mulheres com os seios de fora nos blocos de rua do Rio de Janeiro foi em 2017. Não faz muito tempo. E eu estava com a Ana, essa morena maravilhosa que aparece do meu lado esquerdo na foto. Nesse mesmo ano, eu conheci a Maria, essa deusa, louca e feiticeira, que está do meu lado direto. Na foto e na vida.

Naquele carnaval, tínhamos recém sofrido o golpe e gritávamos “Fora Temer”. Os protestantes já invadiam o Senado. Mesmo assim, ainda não imaginávamos que o pior estava por vir. Eu olhava admirada para as mulheres com os seios à mostra nas ruas do centro da cidade e me emocionava ao achar que estávamos progredindo. Errei feio, errei rude. O resto da história vocês já conhecem: de lá pra cá, regredimos tanto que, em 2020, sair assim no carnaval passou a ser um ato ainda mais revolucionário e de afronta.

Em tempos sombrios como os de agora, a sensação de liberdade de bancar essa atitude, mesmo que não passasse de uma sensação efêmera, foi maravilhosa. Homem nenhum nunca vai entender isso. De direitos de uso do próprio corpo adquiridos na base da afronta, entendemos nós.

E entendemos tanto que admiramos quando nos deparamos com uma mulher que se banca, se aceita e se liberta de travas, regras e tabus. Foi com essa admiração que nós fomos acolhidas por outras mulheres, nas redes sociais e nas ruas. Nos paravam pra dizer que estávamos lindas, que admiravam a nossa atitude. Algumas vinham nos abraçar e nos agradecer. Isso foi de uma beleza sem igual.

Sair com as nossas divinas tetas à mostra, num ato “socialmente profano”, foi também resultado de uma força crescente e uma consciência que foi tomando forma paulatinamente graças ao movimento feminista, que nos provoca a questionar e a dizer: “peraí, não somos nós que temos que esconder nossos corpos pra não atiçar o instinto sexual dos homens. São eles que precisam se controlar.”

Eu sinto atração por homens e nem por isso saio agarrando eles na rua.

Eu não tô mais disposta a me esconder com medo deles. Eu não admito mais achar que meu corpo ou a quantidade de pano que me cobre são gatilhos pra estuprador. Eu não aceito mais ter vergonha das minhas divinas tetas, estando elas de fora ou simplesmente com os mamilos marcando na camisa. E é por isso que agora eu entendo que, de fato, o que a gente fez foi um ato de coragem. Aqui ou em Olinda, protestando com centenas de mulheres de peitos de fora no bloco da Vaca Profana, ou fazendo nossa manifestação singela num bloco no Rio.

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Como disse (sabiamente – as usual) a minha amiga Oksana: botar os peitos de fora e sair na rua não é prova de estar 100% resolvida com tudo e não ter nem um pingo de receio das consequências. É encarar mesmo com receio. Coragem não é ausência de medo (isso é imprudência), coragem é ir com medo mesmo.

“Você acha que essa é uma forma legal de se expressar sobre o feminismo, Roberta?” – dentre as críticas que recebemos, as cobranças surpreendentes que sofremos, uma de nós por parte da família, outra por parte do parceiro ou dos colegas, essa foi uma das perguntas que me fizeram. E eu respondo: acho que é UMA DAS, sim. Homem tentando invalidar o conhecimento de causa da mulher é puro Mansplaining.

“Vocês estão sendo muito radicais” – outra acusação clássica! Agora somos feministas radicais e raivosas porque usamos nossos corpos como forma de expressão e manifestação. A quem estamos ofendendo? Então, se é pra servir de entretenimento pra homem, tudo bem colocar os peitos pra fora, mas se é por um ato político ou simplesmente porque sentimos vontade de mostrar as peita, não pode? Não tem cabimento.

Assim como não tem lógica reduzir a causa feminista a botar as tetas pra fora num bloco de carnaval. A gente tá aí há séculos lutando pela igualdade em todos os campos da vida, pela equidade salarial, pela liberdade de escolha e sexual, pelo direito de ir e vir sem ser assassinada no caminho, pura e simplesmente por ser mulher. A nossa luta é grande, a lista é imensa e infelizmente a batalha tá só começando. Não vem reduzir nosso ato de coragem e autoaceitação à simples necessidade de exibição, porque nossa atitude também diz respeito à tentativa insistente de dar um basta na objetificação do nosso corpo, que nos leva a sofrer 90% dos abusos e desigualdades citadas no começo deste parágrafo.

O que você vê nessa foto são só corpos de mulheres LIVRES. Não classifica crime de “atentado ao pudor”. Não gostou? Não olha!

Essa atitude, aparentemente inofensiva, mexeu com as minhas estruturas de um jeito surpreendente. Eu devo muito ao movimento feminista, que se mostra presente e atuante até mesmo quando eu acho que tô distraída. Eu nunca tô, na verdade. Basta olhar pro meu lado: as mulheres que caminham comigo não estão ali por obra do acaso. Eu escolho quem me fortalece, e elas me escolhem pelo mesmo motivo.

Junte-se às mulheres que já despertaram. Nós somos a revolução. Nós seguimos promovendo a transformação que as bruxas das nossas bisavós começaram lá atrás para que, quem sabe, as nossas bisnetas possam gozar da liberdade que perseguimos.

Roberta Simoni

“(…) Deusa de assombrosas tetas

Gota de leite bom na minha cara 

Chuva do mesmo bom sobre os caretas”

As trivialidades (nada banais) nossas de cada dia

The Smart Trick of easy rangoli designs That No One is Discussing #designs #Discussing #Easy___

Clau, que saudade! Faz uns dias que eu tô pra te escrever, mas cadê que arrumo tempo? Tanta coisa pra gente conversar, né? Mas vamos por ordem de prioridade: você conhece o besouro rola-bosta? Eu não conhecia, Clau, como é que eu nunca tinha ouvido falar desse bicho? É uma espécie de besouro que vai acumulando bosta de outros animais até formar uma bola grandona de merda que ele sai rolando até o ninho, onde enterra os ovinhos e também usa como fonte de alimento pra família toda durante o inverno. Esse besourinho consegue empurrar uma bola de estrume até dez vezes maior e mais pesada que ele.

Sabe qual a semelhança e a diferença entre nós e o besouro rola-bosta? É que a gente carrega muita bosta também, mas não sabe usar nem como adubo pra florescer. Uma vida empurrando bosta pra nada é muito triste, Clau, ainda por cima quando a gente tá carregando a bosta dos outros.

Às vezes, eu fico pensando numas coisas muito aleatórias, sabe? Por exemplo, quando vejo no noticiário que outra mulher sofreu feminicídio, fico pensando que se acontecer comigo qualquer dia desses, quais fotos será que os jornalistas vão escolher para ilustrar a notícia? Torço para que eles sejam generosos e escolham uma que eu passe alguma credibilidade. Se bem que eu não sei se tenho fotos assim. Mas mesmo se eu tiver, não vão ser as que eles vão usar, certeza. Além disso, se eu me preocupo menos do que deveria com a imagem que eu passo viva, qual a diferença que vai fazer quando eu estiver morta, não é mesmo?

Semana passada eu fui assistir ao espetáculo de um amigo que, graças às deusas, tá sendo reconhecido pelo seu talento e ficou famoso. Mas desde que isso aconteceu, não tivemos mais nenhum momento só nosso, como aqueles que gente vivia inventando uns anos atrás, por qualquer pretexto. Quando você tem um amigo que fica famoso, você só tem uma opção: se ajustar à agenda dele, e sem fazer mimimi. Pra uma canceriana como eu, você sabe que isso requer algum esforço. No final da peça, tinha uma multidão em volta dele. Fiquei quietinha no fim da fila esperando a minha vez. Quando chegou, ele estava tão atordoado que, ao invés de me abraçar, passou o braço em cima do meu ombro e fez pose pra alguém tirar uma foto nossa. Mas não tinha ninguém, eu fui sozinha pra lá. Foi até engraçado. Sucede que ele tem tirado tanta foto com os fãs que já tá fazendo isso no automático. O bichinho suava, estava esbaforido, nem se tocou. Eu puxei ele pra perto, abracei forte, segurei o rosto dele e dei um selinho, como a gente sempre fez. Não demorou mais do que um minuto até que alguém puxasse ele pra fazer um story pro Instagram. Mas deu tempo de ele me agradecer e dizer que não esqueceu de tudo que passamos juntos e que eu fazia parte do sucesso dele. Gratidão é uma palavra que, tragicamente, se banalizou, mas quando ela se manifesta assim, despida na sua frente, é coisa linda de se ver, Clau. Chorei até.

Eu cheguei num estágio da adultice que tenho amigos que já compraram a casa própria, tem noção? Amigos casados e com filhos todo mundo da nossa idade tem. Mas amigos que estão pagando a prestação da casa própria enquanto você só tem a caixa velha do banco imobiliário faltando um monte de pecinhas, é ligeiramente assustador, cê num acha? Eu tô com 35 e comprar uma casa continua sendo uma das ideias mais distantes da minha vida, provavelmente a que mora mais longe da minha casa alugada.

Quando eu me imagino com grana, eu tô sempre viajando e comendo bem. Na cena de riqueza que eu projeto, nunca tô acumulando bens, no máximo, reservas pra poder me divertir mais. Se eu morrer hoje, deixo um legado de livros não lidos e uma coleção de cadernos com ideias e desabafos impublicáveis, de forma que, se eu me tornar uma escritora famosa algum dia, tenho que encontrar um destino pros meus cadernos. 

Preocupada com isso, liguei pra mamãe. Falei com ela que se der ruim e eu for antes dela, só ela pode ficar com meus cadernos, mas se a vida seguir sua ordem natural e ela for primeiro, é contigo que eu vou ter que deixar, Clau. Sinto muito… posso até te ver revirando os olhos, mas foda-se. Não adianta me dizer pra usar o celular, tu sabe que eu não abro mão de escrever à mão.

Da última vez que a gente se falou, você me perguntou sobre as minhas angústias, eu fiquei pensando em como te responder isso. Você sempre faz umas perguntas de vestibular que eu levo séculos pra elaborar uma resposta (por isso também a demora em te escrever). Funciona assim com as minhas angústias: eu faço com elas a mesma coisa que os adultos fazem com crianças pequenas quando precisam encontrar uma distração rápida: “olha ali, Angústia, que bonitinho o passarinho…”

Ela olha, se encanta, dá certo por alguns minutos, até que ela lembra e começa a chorar de novo. É só o tempo de eu pensar em outra forma de entretê-la enquanto ainda não consigo encontrar uma solução. E assim os dias vão passando. Quando a gente vê, já é outono de novo, Angústia cresceu e se tornou uma moça. Sabe lá o que é ter uma Angústia adolescente em casa? É claro que você sabe. Eu conheci umas bem senis quando estive aí.

Agora, falando de constrangimentos, pra variar. Sabe uma coisa que acho fascinante nos filmes e séries? Quando as pessoas têm alguma conversa desagradável num restaurante, uma delas se levanta e vai embora. Na vida real, a gente janta o constrangimento e ainda divide a conta. 

Um tempo atrás, conversando com uma amiga com quem eu não estava conseguindo estabelecer uma conexão nem por internet discada depois da meia noite, entre todas as hipóteses que levantamos pra desvendar o problema da nossa recente falta de conexão, questionei que “eu só queria uma relação de leveza”, mas antes mesmo de terminar a frase, eu me flagrei colocando um peso enorme nas costas dela por insinuar que era ela quem devia ser mais leve. Consegui engolir a frase antes de cuspi-la. Cobrar leveza de uma mulher que está carregando o mundo nas costas é leviandade. Não sei se ela percebeu que eu ia dizer isso, mas eu fiquei constrangida mesmo assim, tanto que tô até hoje pensando nisso. Mas é bom até, porque as coisas que merecem a nossa atenção, normalmente recebem uma atenção desatenciosa. Não dessa vez.

Aliás, me faz um favor? Se eu voltar a me comportar assim, você me avisa?

Eu vou ter que me despedir agora, Clau, porque ainda tenho que levar a Wilma ao veterinário, passar no cartório pra reconhecer firma, enfim… todas essas coisas odiosas da vida de adulto da qual tentamos tanto escapar e, no entanto, estamos aí, sobrevivendo. A gente sobreviveu à bala soft, aos cigarrinhos de chocolate, à brasília lotada sem cinto de segurança, ao Fofão, ao disco da Xuxa ao contrário, aos piolhos e até à loira do banheiro, não é uma burocracia ou outra que vai nos amofinar, certo?

Ah, antes de ir, só mais uma coisa: voltando da minha última viagem, percebi que existem dois tipos de pessoas: aquelas que não se importam de fazer as pessoas se levantarem no avião pra elas irem fazer xixi várias vezes durante o voo e as que passam a viagem inteira apertadas com medo de incomodar. Você e eu sabemos a qual grupo nós pertencemos.

Até quando, hein, Clau?

Um beijo, com amor e provocação,

Tua,

R.S.

Sobre render-se completamente ao universo

As coisas só começam a melhorar (ou a parecer menos piores) quando a gente se rende completamente ao universo – excelente frase de efeito pra ser usada em legenda de selfie fazendo biquinho ou no espelho da academia, mas, óh… pra pôr em prática complica um cadim, e não tem filtro bonitinho que dê jeito.

Eu tô aí tentando entender por que custo tanto a me render. Acho que tem a ver com gênero. Mulher é resistência purinha, do dedo mindinho ao último fio de cabelo. Resistir é nosso instinto natural. Deve ser por isso que mesmo em situações que pedem rendição instantânea, a gente não se entrega fácil, não.

“Mãos ao alto, isso é incontrolável” – grita Descontrole, um temido bandido não procurado, que exige: “passa tudo, madame”, me obrigando a entregar as minhas certezas banhadas a ouro, as convicções de prata, as pérolas de planos e as expectativas de 256 gigabytes e 12 megapixels que eu ainda tô pagando prestações à perder de vista. “Perdeu, perdeu!”

Ainda tento reagir e argumentar com o bandido. “Moço, deixa eu salvar pelo menos as certezas? Elas têm valor afetivo pra mim!” – eu imploro, mas ele arranca tudo da minha mão e sai correndo. Escapa por um beco escuro que dá na Rua dos Bobos, nº 0, uma casa muito engraçada, que não tem teto, não tem nada, nem parede, chão ou penico, mas que foi feita com muito esmero pelo Seu Controle, engenheiro renomado no ramo da construção civil.

Ele projeta casas tipo aquelas de revista de decoração, que ninguém tem, mas que todo mundo sonha em morar. “Tudo ilusão”, papai diz entre os dentes, e eu sei que ele não tá se referindo à casa toda chiquetosa, mas ao controle sobre as coisas. Papai é envolvido com tráfico de verdades, trabalha pro chefe lá da boca, Zé Realidade.

Papai acha que esse trabalho fez ele se render completamente ao universo, mas na realidade não é tão-tão completamente assim, não. Talvez ninguém consiga se render por inteiro a tudo, sempre tem aquela situaçãozinha desconfortável, aquele serzinho miserável que a gente ainda fica tentando aprender como lidar, até sentenciar: eu me rendo, não sei mais o que fazer com isso, cuida aí universo (ou deus, deusa, como você gostar de chamar aquele para quem você entrega tudo aquilo que não consegue gerenciar).

Veja bem, eu tô falando de render-se, não de desistir. São coisas parecidas, mas destintas.

Ok também se desistir, geralmente não é demérito nenhum e requer muita coragem, mais até do que insistir. Mas render-se exige mais do que coragem, exige uma confiança sobre-humana numa energia que você nem sequer pode ver, tipo deus, que funciona como uma espécie de gerenciador de problemas que não são da sua alçada.

(Dica rápida: se o causo for material, tem um mecanismo simplesinho pra conseguir render-se: entendendo que não tem renda suficiente, ou lembrando do imposto de renda. Nesse caso, o lance de “mãos ao alto” não é figurativo.)

“Dá aqui que eu cuido disso” – frase muito usada por mães e esposas, que é mais ou menos o que o universo diz quando estamos tentando fazer uma parada que não temos a MENOR aptidão pra fazer. Pior: que muitas vezes não temos que ter porque não é da nossa conta, por mais que envolva os “nossos” problemas, essa interferência só atrasa o rolê.

O negócio é o seguinte: tentou de um jeito, tentou de outro, falou com o deus e o mundo, fez o diabo a quatro e a coisa não rolou ou continua rolando, é hora de abrir os braços, fechar os olhos e se atirar no colo do universo. Niqui a gente finalmente chega ao ponto de se jogar, quando abre os olhos, percebe que caiu numa rede. O alívio é tão grande que começa até a se balançar pra sentir a brisa. E, olha, eu tô pra experimentar vento mais suavão que aquele que bate no sul da sensação de ter feito tudo que podia.

Roberta Simoni

 

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.”

(Clarice Lispector)

As definições de autossabotagem foram atualizadas com sucesso

É com muito pesar que venho através desta crônica contar que descobri mais um defeito meu de fabricação. É uma lástima, mas a garantia já venceu há tantas décadas que não tem nem onde se queixar, não tem ouvidoria pra ligar ou loja pra ir e tentar trocar. Tarde demais. Me devolver eu também não vou, então o jeito é ir tentando fazer uns reparos aqui e ali e pra tentar ficar minimamente funcional.

Se você tá pensando que eu tô aqui falando sem parar pra enrolar e não contar o meu defeito recém-descoberto, você deve estar sentindo calor, pois está coberto de razão.

Eu descobri uma técnica minha de autossabotagem muito antiga e, pro meu desespero, muito eficiente. Funciona assim: eu tenho uma coisa pra fazer, mas essa coisa pode esperar, tipo lavar a louça, aí eu vou adiando, porque embora me incomode, não incomoda o bastante pra eu resolver logo. Mas aí, quando aparece uma coisa importante pra fazer, que pede prioridade, instantaneamente a limpeza da louça se torna urgente.

As coisas que merecem atenção de verdade, recebem uma atenção desatenciosa. É como se eu desviasse atenção daquilo que realmente importa pra eu não me apavorar com a importância de executá-la. Aí eu vou ali e pá, lavo uma louça, dou uma varridinha na casa, arrumo a escrivaninha, organizo o estante de livros por cores pra ter a sensação de que eu tô preparando o terreno pra fazer “a grande tarefa”. Ou, pior: faço as pequenas tarefas pra ter a sensação de que pelo menos eu consegui fazer alguma coisa, caso eu não consiga executar a grande tarefa. Ou, pior ainda: faço as pequenas tarefas primeiro pra ter o argumento de que não estou conseguindo fazer a grande tarefa porque estou abarrotada de pequenas tarefas pra fazer, ou seja, crio uma desculpa concreta pra convencer a mim mesma de que não tinha mesmo como fazer.

Quando se trata de um trabalho remunerado, a ordem é inversa. Priorizo sempre as urgências de forma prática e automática. Quando alguém / alguma empresa tá me pagando pra fazer uma coisa, entendo que se eu não for eficiente, vou prejudicar quem está confiando uma missão a mim. Nem me esforço, vou lá e faço sem pestanejar. É tipo gago tentando falar sem gaguejar, daí quando sobe num palco e começa a cantar, não gagueja, como quem vira uma chavinha. Na hora de trabalhar pros outros, eu funciono instantaneamente, e na hora de fazer qualquer coisa pro meu próprio benefício, eu desfunciono.

Exemplos práticos de prioridades que não priorizo: estudar inglês, preparar meu portfólio, me exercitar, escrever o próximo capítulo do meu livro e por aí vai. Todos esses estão na pasta das “Grandes Tarefas”, que é uma subpasta da pasta “Adiáveis”.

Não que a lavagem da louça não seja importante. É, mas tudo bem se ficar pra depois porque isso não vai causar nenhum grande impacto no meu futuro. Já o portfólio que eu deixo de fazer, por exemplo, vai influenciar diretamente no meu futuro, quando alguém pedir meu portfólio pra avaliar meu trabalho e eu não tiver ou quando pintar uma vaga incrível que exija inglês fluente e eu ainda não souber falar. Esse último é um clássico na minha vida. Se eu estivesse dando exemplos hipotéticos já seria deprimente, mas imagine você que esses são só alguns relatos.

Esse texto é só um lembrete pra mim mesma de que sou eu quem cria os maiores obstáculos da minha vida, de como eu sou a causadora dos meus maiores problemas e, por consequência, sou a única que pode criar estratégias para se livrar deles. E se esse texto caiu no seu colo assim, do nada, desculpa o tapa na cara, mas alguém precisava te acordar pra vida também, meu anjo.

(Ah… é possível que este texto tenha saído porque eu tinha alguma coisa mais importante pra fazer? É, sim.)

Roberta Simoni

A menina dos sapatinhos confortáveis

Uma vez você olhou pros meus pés e disse: você é a menina dos sapatinhos confortáveis. Meses antes você havia me dado pares de sapatos lindos, um deles, de salto alto. O mais lindo que tenho, e o que menos usei, pois deixa meus pés moídos. Aqueles que te dei, você disse, não te vejo usando, já essas sapatilhas, você nunca tira dos pés. Procurei algum sinal de mágoa na sua voz quando constatou minha preferência pelo conforto à estética. Não encontrei. Talvez, no começo, você tenha ficado chateado por quase nunca me ver usando os calçados que me deu, mas depois entendeu. Os que eu comprei são mais simples e baratos, mas não me apertam, não dão bolhas ou causam calos medonhos. Eu já me sinto desconfortável demais no mundo pra usar calçados que causam esse mesmo efeito.

Antes de ser a menina dos sapatos confortáveis, eu era a menina dos joelhos ralados. Tenho poucas lembranças da minha infância com os joelhos livres de mercúrio, merthiolate e casquinhas de feridas, constantemente renovadas. Aliada à minha distração, eu tenho pernas levemente tortas, defeito que poderia ter sido corrigido com palmilhas ortopédicas. Meus pais gastaram dinheiro com isso até notarem que era inútil. Não que elas não fossem eficientes, mas porque eu as tornava assim, já que a recomendação médica era de uso diário durante toda a fase de crescimento, que levaria alguns anos e eu passei a me recusar a usá-las depois de alguns meses, alegando que não faziam efeito. Desde aquela época já era possível identificar um dos traços mais problemáticos da minha personalidade: o imediatismo. Causado por uma ansiedade crônica, raramente sanada com maracugina ou ansiolíticos.

Eu não preciso de degraus ou buracos para tropeçar, faço isso sozinha, com meus próprios pés, sem o auxílio de sapatos de salto de qualquer estatura. Sou capaz de tropeçar descalça numa superfície plana e antiderrapante. Pode ser que o defeito na minha pisada (fatalmente não corrigido na infância) colabore com meus tombos – mais frequentes do que eu gostaria de admitir – mas o justo é dar os créditos à minha constante pressa. Eu ando correndo mesmo quando não estou atrasada, aliás, eu raramente me atraso. Pontualidade é outro traço crítico da minha personalidade, quase um desvio de caráter. Mas não seria se eu vivesse, por exemplo, na Inglaterra (cada vez encontro mais motivos pra me mudar pra lá).

No entanto, ser pontual não significa necessariamente ser organizada. Nesse quesito não estou tão apta assim a viver num país de primeiro mundo, mas não vamos focar nisso. A questão é que não preciso de antecedência pra me arrumar porque sou rápida e ótima otimizadora de tempo (com o perdão do trocadilho cretino, porém irresistível). Sabendo disso, faço em meia hora o que eu poderia fazer em duas, sem pressa alguma. Então, por hábito, mesmo quando não estou com o tempo estourando, estou correndo.

Mais devagar, você reclama ofegante quando caminhamos juntos. Ou pergunta sutilmente pra onde estamos indo com tanta pressa. Estou correndo outra vez, eu te pergunto e você ri, me dando a mão e me ajudando a desacelerar o passo. Quanto mais longe for o nosso destino, maior será a quantidade de vezes que você vai precisar fazer isso. E é por isso que eu uso sapatos macios e leves. Nem sempre bonitos como aqueles que você me deu, mas certamente mais confortáveis.

Meus dedos tortos também não ajudam, pois não é com qualquer calçado que ficam bem. E é por isso que, além de confortáveis, meus calçados são majoritariamente fechados, poupando o mundo de mais feiuras.

Já meus joelhos, embora cheios de cicatrizes, não me incomodam por viverem à mostra, quase sempre livres de calças e com vestidos e saias de comprimento insuficiente para encobri-los e protegê-los.

Mas não pense você que minhas pernas à mostra são pernas destemidas. Elas são, no máximo, sem vergonha. E continuam tortas, por consequência daquele mesmo imediatismo que você conheceu na noite que eu te disse, com os olhos marejados, que não ia te esperar porque isso podia levar tempo demais.

Então, você me desculpe se eu continuar a não usar o sapato de alto que me deu, mas é que, além do desconforto que ele me causa, o risco de eu cair com ele é bem maior e as cicatrizes que tenho nos joelhos não me deixam esquecer como aquelas feridas são doídas.

Além do mais, você não ia querer me ver machucada.

Ia?

Roberta Simoni

Ninguém sabe. De coisa alguma.

A gente é um emaranhado de coisas. As pessoas que cruzam ou convivem com a gente não sabem da missa a metade. Ainda bem, pois se soubessem da missa inteira, contestariam, fugiriam ou dormiriam no meio. Melhor assim.

Ninguém precisa saber que você chorou escondido no banheiro do trabalho porque no meio da tarde foi assaltado por uma lembrança ou uma saudade aguda.

Exceto se eu quiser contar, ninguém precisa saber que eu gosto de tomar banho no escuro ouvindo música todas as noites quando chego em casa. E que, às vezes, eu choro. Por nada, e por tudo.

Você não precisa admitir que tem ficado até tarde trabalhando porque não sente mais prazer de voltar pra casa. A gente nota, mas não fala nada.

Deixe que suponham. Deixe que deduzam, que digam. Eles não podem fazer isso o tempo todo. Em algum momento serão obrigados a se voltarem pra suas próprias vidas e enfrentarem seus próprios dilemas.

Ninguém sabe quem você leva pra cama e se alguém leva pra cama a preocupação de com quem você tem ido pra cama, certamente é porque gostaria de ir pra cama com você ou porque não anda lá muito contente com quem tem levado pra cama.

A preocupação com as atividades sexuais alheias é algo que eu talvez precise de mais algumas encarnações pra compreender. Não sou boa com questões lógicas, mas essa me parece bem simples: se uma pessoa se ocupa de investigar com quem você escolhe passar suas noites se deitando (ou sentando, que seja), ela está desperdiçando o tempo que deveria estar se ocupando de fazer o mesmo.

Triste, não é? Pois é, mas eu descobri que acontece o tempo todo e por toda parte (habitada por seres humanos).

Ninguém sabe que você tem pensado o tempo todo em se separar, se mudar pra outro país e ir trabalhar na praia pra ajudar o povo de humanas a fazer miçanga.  E que, com a mesma frequência, você pensa que isso é um disparate. E que seu cérebro passa dia após dia vivendo esse dilema enquanto consegue te fazer continuar agindo normalmente. E você forja uma normalidade que pode chegar a suportar por anos.

Ninguém sabe que você tem medo de tomar tarjas pretas porque, no fundo, se acostumou a viver dentro do seu caos e não saberia o que fazer sem suas angústias já domesticadas. Mas eles insistiram e você procurou um médico, que te disse que você tem uma dessas síndromes contemporâneas. Mas você é démodé e não quer se medicar porque acha que a vida vai ficar ainda mais insuportável se suas dores ficarem dormentes.

Tem gente que não sabe que você toma tarjas pretas justamente pra conseguir suportar gente assim.

Ninguém sabe que a gente tem se frequentado e que não tem frequentado quem a gente vê com frequência. Somos improváveis demais pra nos cogitarem frequentando o universo um do outro.

Eles não sabem quantas coisas na sua vida acabaram antes mesmo de terem começado. Nem quantos projetos você começou e não conseguiu acabar. Nem quantas vezes você chorou porque acabou o que você queria que tivesse continuado e continua com o que queria que já tivesse acabado.

Você não precisa contar pra ninguém que está com raiva, infeliz ou amargurado. Se disser isso em voz alta, capaz de contar pra última pessoa que deveria saber: você.

Uma vez constatado, você vai precisar fazer algo a respeito disso. E você tá cansado demais pra conversar, pra gastar energia (se) debatendo. Tá muito acomodado pra sair do lugar, pra cogitar viver numa outra realidade onde suas tristezas e insatisfações não cabem, pois elas vêm acompanhadas de benefícios espaçosos. Tá na merda, mas tá quentinho.

Ninguém sabe de quem você lembra na hora de dormir e quem é a primeira pessoa que você pensa na hora que acorda. Nem você sabe quem pensa em você.

Ninguém sabe do que você tem medo, o que te paralisa e como foi assustadora a última vez que você teve uma crise de ansiedade ou de pânico. A quem você recorre quando os outros não sabem de nada, mas agem como se soubessem de tudo?

Ninguém sabe que, às vezes, você tá com alguém quando queria estar com outro alguém. Nem imagina o que te dá prazer quando não tem ninguém olhando. E o que te dá tesão quando tem alguém olhando.

Ninguém sabe que você não é o que parece. E que parece o que não é. Mas você não tem culpa se o ser humano é dado a deduções simplórias e rasas. Mergulhar no outro dá trabalho. Sem falar no medo de se afogar. Você nunca sabe o que vai encontrar lá no fundo. Todos nós somos buracos negros.

Ninguém sabe que o que você é hoje é fruto de erros fantásticos, de equívocos abençoados, de pecados inconfessáveis, de litros de suor e lágrimas que ninguém viu escorrer.

Poucas pessoas sabem o que te faz se escangalhar de rir, as idiotices que te arrancam gargalhadas escandalosas. E menos pessoas ainda sabem as pequenas coisas que te provocam as maiores alegrias. E, ao longo da sua vida, serão poucas as que vão saber.

Ninguém sabe o esforço que você tá fazendo pra sorrir e conversar. Quem te vê trabalhando, malhando, estudando, não imagina o drama que tem sido pra você se levantar da cama todas as manhãs. Eles não sabem que você tem preguiça de existir quase todos os dias, algumas vezes por dia, e que respirar já foi mais fácil. Um dia.

Eu não sei o que tá acontecendo na vida da moça que me atendeu com má vontade. Ou na vida do moço que foi grosseiro comigo sem motivo aparente. Mesmo assim, não raro eu desejo do fundo do meu coração que eles se fodam, até me lembrar que eles são também um emaranhado de coisas que não estão aparentes, dificultando que a minha empatia imediata se estabeleça.

Às vezes, a gente não sabe nem as batalhas pessoais que as pessoas mais próximas da gente estão travando.

Ninguém sabe as aflições que passei escrevendo cada parágrafo daquilo que é só um pedacinho das aflições da gente. E eu não vou contar.

Roberta Simoni

Não tô vendo elefante nenhum

Era uma vez uma menina que sonhava em conhecer o zoológico. Um dia, seus pais realizaram seu desejo e ela ficou muito feliz. Fim.

Se tivesse sido assim, essa história – que aconteceu há 30 anos – não teria graça nenhuma. Nem teria história pra contar. Seria apenas mais um episódio de mais uma família que foi ao zoológico, viu uns bichinhos lá e pronto, acabou. Mas o que aconteceu, na verdade, foi uma odisseia que merece ser contada.

Pra começar, o zoológico mais próximo da cidade onde eu nasci fica a mais de 160 km de distância. Minha irmã, Elisa, tinha seis anos e vivia pedindo pros nossos pais levarem-na lá. Ela sonhava em ver os bichos de perto, especialmente o elefante.  Eles resolveram realizar o sonho da primogênita, planejaram a viagem com antecedência, pensaram em todos os detalhes (ou quase todos). Eu, no alto dos meus três anos de idade, não dava conta de muita coisa. Onde quer que me levassem eu só queria correr e subir onde não podia pra fazer o que não devia, feito uma criança hiperativa, só que naquele tempo chamavam crianças assim de levadas ou arteiras. Enfim. Prossigamos, pois não estamos aqui pra falar de mim.

Era o ano de 1987, meu pai tinha uma brasília vermelha mágica. Isso mesmo, mágica, porque só magia explica o fato misterioso de oito seres humanos terem conseguido viajar dentro dela, saindo de Cabo Frio com destino à Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro (mas se vocês perguntarem pros meus pais, eles vão garantir que o destino foi o inferno mesmo).

Era verão, fazia um calor senegalês, uma brasília (sem ar-condicionado, naturalmente) transportava quatro adultos e quatro crianças – de três a sete anos. Eu, minha irmã e dois meninos, filhos dos amigos dos meus pais, um casal que era muito próximo deles naquela época, tão próximo a ponto de achar super normal se enfiar dentro de uma brasília com eles, todas as crianças juntas e cair na estrada pra levar seus filhos pra ver um monte de animais enjaulados e entediados, coitados (dos animais e desses pais).

Abre parêntese: quando comecei a escrever esse texto, fui confirmar com minha mãe se isso realmente aconteceu ou se foi fruto da minha imaginação. Mas não foi, realmente aconteceu. Minha irmã e eu fomos criadas por adultos que nos colocavam pra viajar dentro de brasílias (de duas portas!!!) superlotadas. Isso explica muita coisa.

Outro parêntese: coloquei a brasília no plural porque acho que soa mais traumático numa reconstituição dramática. Fecha parêntese.

Voltando à odisseia: lá fomos nós para a cidade grande conhecer o grande elefante. No caminho, minha irmã, sonolenta, já se queixava da demora, do calor, da vontade de fazer xixi. Eu me ocupava brigando por espaço com o menino que tinha a minha idade e que também queria sentar bem no meio, onde eu fazia questão de anunciar que era o MEU lugar, pois o carro era do MEU pai. Tá?

Uma mulher já nasce com poder de argumentação maior que o dos homens. Assunto encerrado, o meio era meu pra eu me apoiar nos dois bancos da frente, olhar a estrada e perguntar a cada dois minutos se faltava muito pra chegar. Quanto ao cinto de segurança, parece que isso não era tendência nos anos oitenta. Cadeira pra transportar criança então, nem pensar. Acho que nem tinham inventado ainda. Se tinham, não chegou em Cabo Frio.

Chegamos no zoológico e lembro de ter escutado duas frases muitas vezes, com algumas variações: “Elisa, olha ali o macaquinho (o coelhinho, o jacaré, o passarinho, etc)” e “desce daí Roberta, não encosta aí Roberta, volta aqui, Roberta…

Na minha família, a regra é clara: só me chamam de Roberta quando tô fazendo merda. Na “maior parte” do tempo, sou Beta. E não me lembro de ter sido chamada de Beta nenhuma vez naquele dia.

Meus pais se esforçavam pra Elisa se interessar pelos outros bichos enquanto a ala do elefante ainda estava distante. Mas ela estava determinada a ignorar todos os animais. E os nossos pais. Eu, no caso, estava ocupada fazendo o que sempre foi minha especialidade: ocupar os dois.

Conforme o passeio foi avançando, Elisa resolveu trocar o interesse obsessivo pelo elefante pelo desejo incontrolável de comer e descansar. E minha irmã possui dois traços muito marcantes na sua personalidade: a determinação e o mau humor quando está: 1- com fome, 2- com sono e 3-cansada de andar.

“Mas a gente já tá quase chegando no elefante, Elisa. Só mais um pouquinho.” (ah, é… essa frase também foi muito usada naquele dia!)

Eis que finalmente, alcançamos o tão esperado-desejado-sonhado-salve-salve elefante, e…

“Não tô vendo elefante nenhum!”

Eles insistiram: “Filha, olha o elefante, que lindo!”

“Não-tô-vendo-elefante-nenhum!”, ela sustentou, até o fim, se recusando a olhar pro animal.

Não teve jeito, àquela altura, minha irmã não estava vendo mais nada. Elefante, ou girafa… nada era maior do que sua fome. Ela seria capaz de comer um elefante, mas de vê-lo, jamais.

Imagino a frustração do pai e da mãe, a vontade jamais verbalizada de pegar aquela criança e jogar na jaula dos leões.

Elefante devidamente desprezado, fomos lanchar. Minha irmã recuperou o vigor. E o pedido insistente da vez (das quatro crianças) era: “quero ir no museu, me leva no museu? vamos no museu, por favor!” (eu gostaria de saber como as crianças são capazes de fazer tantos pedidos, de sentirem tantas vontades urgentes que, se não forem realizadas imediatamente, parece que não vão sobreviver. Ou, o que é mais provável, não deixarão que seus pais sobrevivam).

Corta para: dentro do museu, eu no colo da minha mãe e Elisa no colo do meu pai. As duas dormindo o sono dos justos. O outro casal na mesma situação. Quatro adultos carregando suas respectivas crias completamente apagadas, que entraram e saíram do museu sem ver nada, tal qual o elefante.

Na hora de voltar pra casa, na saída do zoológico, um cachorro leproso que passava por ali, fez as duas meninas se derreterem. “Olha pai, olha mãe, que cachorrinho lindo!”. Os pais das meninas se olharam e caíram na gargalhada. Era isso ou chorar. Não restava muito mais o que fazer.

Moral da história: não faça as vontades dos seus filhos… brincadeira! Na verdade, não tem nenhuma mensagem moral aqui, mas tem uma história muito boa, que cresci ouvindo meus pais contando, às gargalhadas. Mais do que isso: tem uma piada interna maravilhosa, que merece ser compartilhada com o mundo. E usada, por que não? “Tejem” à vontade. 

Na minha família, toda vez que estamos em alguma situação desagradável, num lugar com pessoas chatas, ouvimos alguma coisa que não tem a mínima graça, estamos cansados ou de saco cheio, falamos: “não tô vendo elefante nenhum”.

Algumas vezes usamos como um código secreto: “Tá vendo algum elefante?”, “Não”, “Nem eu”, “Vamos embora?”, “Agora!”

Só mais tarde, minha irmã descobriria que, na vida adulta, ver elefantes seria bem mais penoso do que foi naquele dia. Eu também não demorei a perceber isso. E vejo cada vez menos. Parece que estão em extinção, os pobrezinhos. Uma lástima!

Nessa foto se vê: 1- duas crianças derrotadas, que não estão vendo elefante nenhum. 2- uma menina sem modos que só queria andar sem camisa. 3- Freddie Mercury sentado bem na frente dessa menina (e ela não pediu um autógrafo!!! Céus!)

Roberta Simoni