A cobra da minha avó

Cobra de Estimação

Dona Norma, minha avó paterna, nunca se encaixou no estereótipo da avó tradicional dos anos 80. Era uma senhora baixinha e gordinha, fora isso não tinha qualquer semelhança com a Dona Benta. Foi criada de maneira rígida e com rigidez criou os filhos. Não era lá muito maternal, tampouco sutil. Falava aos berros e vivia se queixando da vida. Os domingos de visita à sua casa entrariam para a lista dos mais entediantes nas minhas recordações.

Vovô Chiquinho – que ainda vive mas nem tanto, pois está acamado há muitos anos, em estado vegetativo – era quem conseguia tornar aqueles domingos menos torturantes, sobretudo quando o encontrávamos de péssimo humor. O mau humor era seu estado natural, mas havia dias em que nem ele se suportava e quando calhava disso acontecer num domingo era uma tremenda sorte nossa! O velho rabugento falava e gesticulava sem parar, sempre indignado com alguma coisa ou com alguém, do Presidente da República ao pernilongo, ele sempre tinha o que reclamar dizer.

Era ótimo assistir meu avô dando um espetáculo (ainda que fosse de ira) e meus pais gargalhando compulsivamente. Eu não decifrava muito bem o que eles diziam, mas entendia que estavam se divertindo e ver adultos se divertindo me deixava curiosa e animada. Não era todo dia que eu via um panda, assim como era raro ver um adulto feliz. Uma coisa exótica de tal maneira que eu parava o que estivesse fazendo para assistir.

Vovó Norma, entre uma queixa e outra, oferecia todo tipo de fruta que tinha em casa. E insistia. Insistia. E insistia de novo. Era o jeito dela de demonstrar carinho. Pena que eu só fui me dar conta disso quando já era tarde para aceitar um daqueles pedaços de melancia com afeto.

*Nota: até hoje quando eu fico muito insistente, papai só me olha e diz: “Não queeero, Norrrrrma”. Às vezes é só assim que eu entendo. Cada um tem a herança que merece, afinal.

Minha irmã e eu estávamos mal acostumadas com a nossa avó materna, com quem passávamos a maior parte do tempo. Ela preparava (e prepara até hoje) sobremesas incríveis e abastecia a dispensa com todo tipo de guloseima para receber a “netaiada” toda. Daí vinha a outra vó e oferecia fruta? “Não, não vó, brigada, a gente tá sem fome”. Quando ela se dava por vencida, falava entre os dentes: “ai, crianças chatas!”

Mas era quando ela insistia pra gente almoçar que o bicho pegava. Verdade seja dita, vovó não era boa cozinheira. Exceto meu pai, que jamais concordará comigo, pois tem um paladar nada exigente (além disso, estamos falando mal da mãe dele aqui), nós comíamos sem o menor prazer. Eu e meus primos, inclusive, tínhamos o péssimo habito de enterrar no quintal o que a gente não conseguia digerir. Era uma atitude pouco inteligente, mas achávamos que nunca seríamos descobertos…

Um dia vovó apareceu com uma novidade: foi regar as plantas e deu de cara com uma cobra enorme. E venenosa!

Costumávamos ser crianças destemidas, mas não a ponto de brincar num lugar onde havia uma cobra venenosa à solta, de modo que comecei a passar longe do quintal que – aos meus grandes olhos de menina pequena que enxergava imensidão em tudo – parecia uma floresta, repleta de plantas enormes, pé de tudo quanto era fruta, hortas e flores de várias cores. Era um jardim selvagem e caótico, mas tinha vida. Tudo ali respirava. Era o que fazia dele bonito. Pena que a presença de um bicho peçonhento fez minha pequena selva ganhar um tom sombrio.

By Christian Schloe

Eu, que já era curiosa antes mesmo de me entender como gente, todo domingo chegava lá ansiando por notícias da cobra. Vovó só faltava passar um relatório completo das aparições da bicha. “Hoje mesmo, um pouco antes de vocês chegarem, ela estava atrás daquele arbusto, mas a miserável fugiu quando seu avô foi atrás”. Minha irmã e eu ficávamos com os olhos arregalados, atentas a qualquer movimento rastejante. Por mais que ela garantisse que a cobra não entraria em casa, eu sempre me sentava sobre minhas pernas, temendo ser pega desprevenida e levar um bote.

Com o passar do tempo, a cobra foi ganhando um espaço no quintal e na vida da minha avó que nem ela poderia supor. “Hoje ela estava pendurada naquele abacateiro ali, né Chiquinho?” e meu avô só balançava a cabeça, concordante. Mamãe e papai não se manifestavam. Não alimentavam o medo que vovó tinha plantado na gente, mas também não podiam desmenti-la. Imagino o quão difícil tenha sido para o meu pai, que sofre de excessos, de sinceridade em especial, a ponto de ter nos poupado de lidar com a frustração da inexistência do Papai Noel, por exemplo. Ele nos oferecia a verdade pra variar, já que o mundo se encarrega de oferecer infinitas fomas de ilusão.

Mas a cobra era o espantalho contra netos da minha avó. O quintal era dela e isso lhe dava o direito de colocar um espantalho para cada neto se assim o quisesse. E quem se opusesse a isso teria dois trabalhos: o de confrontar a baixinha invocada e o de se conformar em perder o confronto.

Sei que eu não colocava meus pés miúdos naquele quintal nem por um decreto. Morria de medo. Antes disso uma cobra era só uma cobra, não uma ameaça. Eu gastava minha cota de medos como qualquer outra criança: com fantasmas, monstros e bruxas, embora meus pais tentassem me convencer de que eles não eram reais.  A cobra não. Ela existia. E eles não podiam negar.

E eu, que já tinha uma relação ambígua desde cedo com o medo, capaz de me paralisar e de me motivar, comecei a me desafiar a colocar um pé no quintal. Depois os dois. Depois a dar dez passos, tocar no pé de fruta do conde e voltar correndo. Um dia decidi desbravar o terreno à procura da cobra e quanto mais acelerado batia meu coração, mais excitada eu ficava. Tudo ia bem, eu ia vencendo os desafios criados por mim mesma paulatinamente, até vovó descobrir minha ousadia e no domingo seguinte me contar que a cobra deu cria.

Não sei por quantos anos vovó alimentou essa fantasia, também não sei por que ela sentia necessidade de inventar tantas histórias se uma só já bastava para nos manter afastados das suas plantas. Talvez ela tenha passado a acreditar na própria mentira depois de ter contado tantas vezes. A única certeza que tenho é que seu jardim se manteve conservado graças àquela mentira. Só quando estávamos mais crescidinhos e já não representávamos tanta ameaça ao seu quintal, ela contou que tinha encontrado a cobra morta. Cheguei a ficar de luto pela bicha e preocupada com as cobras órfãs.

Ao sentenciar a morte da peçonhenta, vovó matava sua mentira conveniente e a minha fantasia de encontrá-la. Ela só não matou o meu medo porque eu mesma já tinha tratado de dar fim nele algum tempo antes, mais ou menos na mesma época que perdi o interesse pelo seu quintal.

Passei boa parte da minha vida acreditando ingenuamente na existência daquela cobra por um simples motivo: eu não tinha razões para duvidar. Nunca passaria pela minha cabeça que alguém pudesse inventar uma mentira tão cabeluda quando podia simplesmente pedir, proibir ou me educar a não fazer determinada coisa. Era assim que meus pais costumavam agir comigo e isso era tudo o que eu conhecia sobre limites.

Anos mais tarde, quando meu primo contou (achando muito engraçado) que aquilo tudo não tinha passado de uma farsa, eu me senti uma tola. Vovó nunca soube que me magoou, mas se tivesse sido comunicada certamente teria me mandado deixar de ser chata, como fazia quando eu me negava a comer uma de suas suculentas frutas.

A sensação de ter sido enganada não foi a das mais agradáveis, mas não era a primeira vez que acontecia, nem seria a última. E passou longe de virar um trauma, pois não havia potencial para tanto. Dramaturgicamente falando seria até mais interessante se eu tivesse desenvolvido alguma fobia por serpentes ou rancor pela minha avó, mas fato é que nada disso aconteceu. Quando me tornei adulta, lembrava disso de um jeito cômico e com um certo saudosismo de uma fase livre de qualquer desconfiança. E agora, enquanto escrevo, percebo como o quintal e a cobra são simbólicos pra mim.

Quando eu fiz a disciplina de filosofia na faculdade e li sobre o Mito da Caverna de Platão fui automaticamente transportada ao quintal de Dona Norma. A grosso modo, o mito conta que prisioneiros passavam a vida inteira presos numa caverna, de frente para uma parede, onde sombras enormes eram projetadas através da luz da chama de uma fogueira. Eram apenas sombras de coisas que existiam e aconteciam do lado de fora, mas eles acreditavam que eram seres malignos e que se tentassem sair, seriam mortos por eles, dessa forma, o medo os mantinha presos. Quando um dos prisioneiros consegue sair da caverna, descobre a verdade e volta para contar aos outros, ninguém acredita nele e preferem continuar vivendo na caverna.

A base dessas duas histórias é a mesma: uma mentira sendo usada para gerar medo e manter alguém sob controle.

Eu não fui esperta o suficiente para descobrir sozinha que a cobra era um mito, mas fui corajosa a ponto de enfrentar o medo que eu sentia e isso diz muito sobre a pessoa que eu já dava indícios que me tornaria.

Vovó só antecipou um tipo de situação que eu voltaria a enfrentar muitas e muitas vezes no quintal da minha própria vida e na minhas cavernas particulares, algumas das quais eu já me libertei e outras onde ainda sou prisioneira porque nem sequer descobri que estou presa ou porque já descobri mas não encontrei um jeito de sair. E tem também aquelas cavernas onde permaneço porque não me dei conta de que a saída já está desobstruída.

No quintal dos outros há sempre o risco de ser habitado por cobras, então eu piso com cuidado. Algumas vezes eu nem piso, porque já pressinto a ameaça. Há ainda aqueles quintais com placas sinalizando perigo. Automaticamente eu acredito nas placas e não me aproximo, mas às vezes o quintal é tão lindo que eu entro pra conferir se não é como era o da minha avó. Pode acontecer de uma cobra me picar. E pode não acontecer também. Quando vale a pena, eu assumo o risco. Ou assumo que já fui bem mais destemida e não vou. Tem dias que qualquer minhoca me paralisa e não há nada no mundo que me faça encostar meu dedo mindinho num canteirinho.

Quando não há metáfora barata que me convença a sair da minha caverna ou a entrar no quintal do Papa é porque o cagaço tá mesmo grande. Aí eu faço como um sábio amigo me ensinou: vou de fraldas, mas vou mesmo assim.

Do quintal da minha avó só sobrou uma roseira que meu pai plantou lá em casa e colocou uma plaquinha onde se lê “Dona Norma”. Na primavera ela fica linda, apesar de papai raramente podá-la. Suspeito que ele goste de vê-la crescendo desordenada com seus espinhos afiados, arredia como sua mãe. Eu não me atrevia a mexer nela, mais intimidada pelo nome gravado na placa do que pelos espinhos. Até que um dia Arthur, meu sobrinho de cinco destemidos anos de vida, com a ajuda do avô, foi lá, tirou uma rosa e me ofereceu.

Tá bom, Dona Norma. Eu entendi.

Papai e Arthur

Arthur e a rosa da Dona Norma

Arthur e a rosa da Dona Norma

Roberta Simoni

Corre Loka, corre!

Corre Lola, corre!

Talvez eu seja uma pessoa horrível. Eu disse talvez. Explico:

Voltando do trabalho, passo por uma rua relativamente deserta. Hoje, na direção oposta, vinha um rapaz na mesma calçada. Por precaução, fui para o meio da rua. Sempre tenho a sensação (ou a ilusão) de que na rua fica mais fácil de fugir do que na calçada, onde posso ser facilmente imprensada no muro sem que ninguém perceba. Pois bem. No instante em que fui pro meio da rua, ele também foi, saltando na minha frente.

Há um pequeno detalhe, no entanto, que vale ressaltar: não há para onde atravessar, pois, do outro lado da rua, só existe um viaduto. Posto isso, concluí o óbvio: ele me abordaria. E abordou.

Quando ele começou a falar, antes que eu pudesse entender o que dizia, tive uma atitude muitíssimo digna e sensata: saí correndo feito uma louca desvairada. E ele ficou lá, me chamando de maluca, dizendo que era só um trabalhador, que não era ladrão…

Talvez não fosse mesmo. Mas aquilo de “a ocasião faz o ladrão” nunca me pareceu tão oportuno.

Depois que cheguei em casa e consegui fazer minhas pernas pararem de tremer, fiquei pensando no moço que se pôs a me chamar de maluca com toda razão. Adoraria ser dessas que não transforma qualquer coisa em reflexões profundíssimas, mas sou. O que se há de fazer com o que se é? Nada além de ser, quando não se está tentando ser outra coisa, é claro.

Mas… e o moço? Aquele cuja fisionomia não me recordo, só me lembro de ser bem maior e mais forte do que eu… como estaria agora? De duas, uma:

Se era um oportunista e me viu como presa fácil naquela situação, deve estar se sentindo como um leão frustrado na selva, depois de cercar sua refeição que, por muito pouco, conseguiu escapar. Agora, se ele de fato é um rapaz trabalhador e só queria me pedir uma informação, ou se queria saber onde eu comprei o vestido rosa que eu estava usando, bom… suponho que ele agora esteja, no mínimo, com muita raiva por ter sido confundido com um ladrão e confesso que me envergonho profundamente por isso. No entanto, me questiono: se ele viu que eu estava assustada, por que me cercou daquele jeito? Se queria uma informação, por que não perguntou de onde estava? Por que precisava me abordar tão efusivamente vendo meus olhos arregalados de medo?

Eu posso ser mesmo uma pessoa ruim e ele, tadinho, podia estar só querendo fazer amizade. Ou eu podia ter sido uma pessoa legal, ter parado para bater um papo com um estranho numa rua deserta e não estar escrevendo isso aqui agora. Trágica? Talvez. Esse é o tipo de situação que prefiro pagar de louca do que pagar pra ver.

Mas o que me traz aqui não é o peso na consciência que quase estou me permitindo sentir por ter cometido um possível terrível engano, nem tampouco para reclamar da violência na cidade do Rio de Janeiro, que o mundo todo tá careca de saber. Também não é para mostrar o efeito que o medo da violência causa na gente ou para contar que estive perto de perder os meus pertences hoje. Embora tudo isso seja verídico, o que me traz aqui, além do prazer de escrever, é a vontade de dar a minha cara a tapa em público, porque perdi a conta das vezes que falei sobre julgamentos precipitados nos meus textos e vejam só, lá estava eu hoje, correndo no meio da rua, de mãos dadas com meu maldito julgamento, tomando de assalto a minha coragem.

Se me arrependo? Na verdade, não. Na dúvida – e com medo – provavelmente faria tudo de novo. E você? Pagaria pra ver ou apostaria todas as suas fichas na velocidade que o seu julgamento é capaz de fazer suas pernas correrem?

Me julguem, pois eu julguei.

E talvez eu seja mesmo uma péssima pessoa por isso e por mais um monte de coisas que não cabem nesse texto. Ou não. Talvez esse seja só um daqueles episódios que acontecem na vida da gente pra esfregarem na nossa cara que, às vezes, fazemos exatamente aquilo que condenamos.

Esperar o pior do ser humano certamente não faz de mim a pessoa mais fofa do mundo, embora isso esteja começando a me trazer a sensação de estar aprendendo a viver nesse mundo perverso, ou pior: desaprendendo a ser gente.

Roberta Simoni

Sobre expectativa de vida, miojo e medo de dentista

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Minha vida não é mais a mesma desde o último domingo, quando, durante uma trilha no alto da Serra, eu caminhava feliz e faceira, admirando as árvores, sentindo o cheiro da vegetação, curtindo o clima ameno de outono, acabei me empolgando com essa coisa toda de contato com a natureza e comecei a cantarolar umas músicas (quase a Chapeuzinho Vermelho, só que não), entre elas, um clássico do Cazuza me veio à cabeça e eu, inspiradíssima, tratei de cantar para o meu namorado, que seguia comigo na trilha:

“(…) Você tem exatamente três mil horas pra parar de me beijar. Hum… meu bem, você tem tudo, tudo pra me conquistar…”

Retribuindo minha singela declaração de amor, ele responde:

“Quero viver um milhão de horas com você…”

Silêncio na trilha.

Confuso com aquele silêncio repentino, ele me pergunta se disse alguma coisa errada e eu, me sentindo ligeiramente rejeitada, respondo: “só um milhão de horas, é???”

“Mas, Beta, um milhão de horas é mais do que uma vida inteira. Isso dá mais de 100 anos. A gente vive, em média, umas 600 mil horas.”

Oi? Momento Maysa: “Meu muuuuuundo caiu!

Perplexa e chocada com essa nova perspectiva de contagem do tempo, passei o resto da trilha cheia de questionamentos profundos e filosóficos sobre a efemeridade da vida, o tempo que me resta e blá blá blá. Questionamentos esses que eu trouxe para casa, para cama e agora para o blog.

(Pausa para duas informações relevantes e esclarecedoras: 1- só é capaz de se chocar com tal perspectiva quem, assim como eu, não tem a m-e-n-o-r noção de matemática lógica e não é capaz de fazer pequenos cálculos mentalmente, o que dirá lidar com números de maior escala. 2- Ficar de recuperação nas disciplinas de ciências exatas foi algo recorrente na minha vida e isso, certamente, deve significar alguma coisa.)

Pelos meus cálculos (mentira, os cálculos são desse site aqui) eu vivi até agora 252.408 horas. Se a expectativa de vida de um ser humano é de 600.000 horas, isso significa que eu já gastei quase a metade do meu cartucho. E, com sorte – se nenhum raio cair na minha cabeça ou qualquer tragédia de outra natureza não me atingir até lá – me restam, em média, umas 340.000 horas de vida.

Só eu acho muito mais assustador encarar o tempo por esse prisma?

Quantas horas eu já não devo ter perdido entediada? Quantas vezes eu já fiquei contando os segundos para o dia acabar? Quantos dias eu já passei na companhia da Laura (minha habitual depressão)? Quanto tempo eu já gastei (e ainda vou gastar) me alienando diante de uma tela (de televisão ou computador)?

De repente, cada minuto desperdiçado começou a parecer uma falta gravíssima, quase uma ofensa.

Em contrapartida, numa conversa que tive hoje com a Gabs sobre “a vida, o universo e tudo mais”, ela me alertou para a existência de um artigo de engenharia genética, que diz que num futuro próximo, talvez seja possível viver 800 anos. Cruzes! Pra quê tanto? Dispenso.

Enquanto isso, a água do miojo fervia e eu, à beira do fogão, continuei tentando fazer contas: se já tem quase 10 anos que eu moro sozinha e nessa década de vida eu já devo ter ingerido muito mais miojos do que meu estômago supõe, imagina isso multiplicado por 80?

Ah não… não quero passar 800 anos comendo macarrão instantâneo, não!

A verdade é que imaginar que a vida pode ser mais longa do que o previsto me assusta bem mais do que ter a noção de que falta “pouco” para acabar.

Ainda mais aterrorizante do que passar centenas de anos vivendo de miojo foi pensar em quantas vezes seria preciso ir ao dentista nesse período. Nas últimas semanas eu venho lidando com o pavor de encarar o dentista para extrair um siso que vem me tirando noites e noites de sono (se houverem dentistas lendo isso agora, me perdoem, não é nada pessoal, eu só tenho muito, muito medo de vocês. E de sentar na cadeira do consultório de vocês. E do barulhinho que fazem essas ferramentas de tortura que vocês usam na boca da gente). Horror é a palavra. Horror!

Conclusão: diante de um medo tão paralisador (e injustificável, eu sei), é capaz de eu ter uma crise de pânico até amanhã, quando a cirurgia no “torturador” está marcada. Também é provável que a minha gastrite piore consideravelmente se eu continuar me alimentando mal desse jeito, com a velha desculpa do excesso de trabalho não me permitir ter uma alimentação saudável.

Sendo assim, se eu chegar aos 30 já tô no lucro, né não? 🙂

Dramática? Eu???

Roberta Simoni

La Dolce Vita

Uma obra de Maria Rachel

Dez horas de viagem depois, o monitor em frente ao meu assento indica que estamos cruzando o Oceano Atlântico… sinto uma euforia misturada com medo, daí escrevo.

– Mas, por que a Itália, Beta?

Por que as pessoas precisam de uma justificativa lógica para tudo? Das poucas pessoas para quem eu contei que estava vindo para a Itália, conto nos dedos de uma única mão as que me fizeram essa pergunta cretina. Foi por essa razão que eu resolvi contar para tão poucos, só aqueles que não precisam de perguntas para saberem as respostas. Eles simplesmente entendem.

– Porque é o meu sonho, respondo.

Isso já é mais do que um bom motivo par me fazer atravessar o oceano suportando três garotinhas barulhentas, que não negam serem italianas. Mas existe uma dezena de outras razões existenciais, profissionais, pessoais, familiares, racionais e emocionais que me fizeram vir parar aqui, das quais compartilho só com quem não precisa me perguntar “mas por que?”…

Nos últimos dias eu descobri muito sobre a verdadeira Itália, sobre o verdadeiro espírito de viajante e, principalmente, sobre a verdadeira medrosa cheia de coragem que sou.

Coragem não só de vir pra cá no susto, sem a menor infra, com o dinheiro contado e sendo obrigada a ouvir piadinhas como: “ganhou na loteria?”, “arrumou um namorado rico?”. Respondo: não, trabalhei mesmo!

As pessoas se acostumam a ver você se ferrando tanto, trabalhando a vida toda feito condenado que pensam que você está condicionado a passar a vida inteira assim. Não, eu não quero acreditar que a vida seja só levar na bunda. E a vida não é. Não pode ser. Mas, se for, que seja na Itália. Ah… como eu amo a Itália!

Dio mio! Mas como é difícil viajar sozinha sem dominar o inglês e tendo pouca ou – como descobri ao chegar aqui – quase nenhuma noção do italiano. Continuo matando um leão por dia aqui, mas um leão italiano (tá, meu bem?). A superação está desde em conseguir me orientar para chegar no hostel das cidades onde me hospedo até perguntar – e conseguir entender – onde encontro a manteiga de cacau na prateleira da farmácia. Pois. Hoje mal consigo rir porque minha boca está toda estourada com o frio, mas desenvolvi uma forma de rir internamente, inclusive de mim mesma, levando meia hora para encontrar o meu hostel em Roma, que ficava a 3 minutos da estação de trem onde eu estava.

Arrumei um mapa e descobri que estava a 5 minutos do Coliseu, mas mesmo com o mapa, me perdi. Na próxima vida eu preciso vir com algum senso de direção porque nessa vida não tá funcionando muito bem querer ser viajante do mundo sem perceber que estou virando à direita quando o mapa indica o lado esquerdo.

Sei que, de repente, dei de cara com ele: o Coliseu. Fiquei com os olhos marejados. Não só pela lindeza de tamanha dimensão daquela obra arquitetônica, mas porque ali, naquele momento, começava a minha viagem.

Me perdi ainda muitas vezes e vou me perder mais outras tantas, mas nessa brincadeira descobri o verdadeiro sentido da frase: “perder-se também é caminho.”

Entre uma rua e outra, entre o Coliseu e a Fontana di Trevi, a gargalhada gostosa de um italiano igualmente gostoso, a expressão irritadiça da recepcionista ao não conseguir entender o que eu tento dizer, “Madonna Mia”, entre todos os detalhes, os sabores, as sensações… eu estou descobrindo a Itália, com as massas mais incríveis que já provei na vida e os sorvetes de nutella que são verdadeiros insultos. Ah… eu amo a Itália! Eu já disse isso?

Encarar esse tipo de aventura sozinha é lidar constantemente com a sensação de absoluta liberdade, o que é maravilhoso e, ao mesmo tempo, assustador. O lindo é que cada passo que os meus pés dão nessa terra que eles nunca pisaram antes, parece magia pura. Até quando eu me perco, eu me acho.

Agora que já descobri o verdadeiro sentido de “La Dolce Vita” vou tratar de aprender na prática como funciona essa coisa de “Dolce Far Niente”, que os italianos fazem com tanta maestria, ah vou…

E o meu trem parte para Firenze em 10 minutos…

Roberta Simoni

Corre, criança!

No sonho eu estava indo viajar, mas não sabia para onde. Não é que eu não me lembre aonde estava indo, é que no próprio sonho eu só sabia que estava indo viajar, mas não imaginava o destino. O plano era chegar no aeroporto e escolher um rumo conforme as disponibilidades de locais e horários, contanto que o embarque fosse imediato. Eu arrumava as malas com uma euforia infantil, de quem não precisa se preocupar com nada, só em simplesmente ir e ser feliz.

Mas as perguntas práticas começaram a impregnar: iria para um lugar tropical ou frio? Que roupas deveria levar? Por quanto tempo ficaria fora? De quanto dinheiro precisaria? Comecei a sentir aquele velho e conhecido medo do desconhecido, não aquele que paralisa, mas o que move. O objetivo era sair de casa sem saber aonde estava indo, quando voltaria e, o principal, como voltaria. Eu estava dando um par de pernas de presente para o meu coração, pernas intuitivas!

Mas elas só andaram até a fila do check-in no aeroporto, quando uma senhora apareceu, me convenceu a sair da fila, me levou para uma casa grande e me trancou lá dentro. Foi aí que o sonho colorido virou pesadelo cinza.

Lembro de ter dormido e acordado, ainda na casa dela, trancada num quarto confortável e quando a mulher abriu a porta, me trazendo um prato de comida, eu escapei, correndo  escada abaixo, procurando a saída. Ela gritava que não ia adiantar, porque eu não ia conseguir fugir. Mas eu chegava até um quintal e pulava os muros das casas vizinhas até sair numa rua escura e barrenta. De repente o dia virou noite. A mulher, correndo atrás de mim, esbravejava, me chamando de tola, dizendo que eu não ia encontrar lugar melhor no mundo do que a casa dela. E eu só corria, corria, corria. Cheguei até a encontrar – e ultrapassar – um maratonista no caminho (ah, gente! Me deixa sonhar….). A essa altura, eu já tinha perdido a minha mala e as minhas sandálias, corria descalça na estrada de barro.

A velha miserável continuava atrás de mim, enfurecida. Eu já estava sem fôlego, mas continuava correndo. Quando finalmente consegui despista-la, já era tarde da noite, eu estava suja, perdida, com medo e, para piorar, eu tinha virado criança. Usava um vestido rosa rodado lindo, mas continuava imunda dos pés à cabeça. Daí acordei.

Não sabia por que eu tinha voltado a ser menina, não sabia exatamente de quem eu estava fugindo, tampouco para onde eu estava indo, mas recuperei a liberdade que era tão minha lá no começo do sonho.

Faz dias que tive esse sonho, comecei a escrever sobre ele, depois fiquei tão sem rumo no texto quanto a menina de vestido rosa rodado, suja de lama. Só hoje, enfim, tive uma epifania!

A mulher que me tira do aeroporto e me tranca numa casa é a minha própria consciência racional, a minha versão protetora de mim mesma, meu lado conservador que não entende meu instinto livre e aventureiro. É o medo personificado, fazendo das tripas coração para confiscar meu futuro.

Afinal, como esperar que o medo e a razão não reajam mal diante de tamanho disparate? Eu estava saindo de casa para me perder na tentativa de me achar, era óbvio! Uma necessidade tão grande de liberdade que vira uma coisa quase irracional, instinto puro, tipo bicho que quer sair da jaula com comida farta e água fresca para voltar para selva, com todos os perigos e desafios que ela oferece. Até os animais domesticados, tratados cheios de mimos e vontades, diante de um portão aberto, fogem.

Então deixa eu ser criança que, na primeira chance, me desprendo das mãos dos meus pais, corro pra mais longe, mesmo sem saber pra onde, só para experimentar a sensação deliciosa de estar indo para algum lugar com os meus próprios pés.

Vou voltar lambuzada de lama, mas com um sorriso impagável na cara.

(e essa é a minha resposta para você, minha senhora!)

Roberta Simoni

Sobre amores e temores

Agora talvez eu seja mais temor, mas, por tanto tempo fui só amor. Amor purinho, da melhor qualidade. E morria de dó dos meus amigos que tiveram o coração partido e não conseguiam juntar seus cacos. E não entendia porque os casais se destruiam enquanto tentavam construir um relacionamento, uma vida juntos, uma casa com um quarto a mais para as crianças e um quintal grande para os cachorros. No lugar de levantar paredes de tijolos, montavam um castelo de areia, que a cada vento mais forte que batia, desmoronava.

Eu já construí os meus castelos de areia por aí. Mas a gente nunca vê isso com clareza na hora da construção, ou até percebe, mas ignora, finje que os grãos de areia são tijolos e toca com a obra, até o dia do primeiro vendaval tornar a falta de tijolos gritante!

Por dois ou três relacionamentos seguidos eu me surpreendi com a minha capacidade de colar os pedaços partidos do meu coração e mantê-lo lá, aberto, ainda que fragilizado, exposto para amar de novo. Só que, com tanta exposição, eu peguei uma bactéria perigosa chamada medo.

Mas, não se preocupem, tem cura. De medo eu não morro! Só que essa bactéria causa um tipo de reação ao organismo que, se não houver um tratamento adequado, de hospedeira em “corpo estranho”, ela passa a ser moradora fixa, com contrato de locação e tudo. O processo de cura é lento e demorado, mas quase sempre eficaz.

Enquanto sigo com meu tratamento, observo meus amigos (na maioria homens), verdadeiros românticos – felizmente – incorrigíveis e fico tão orgulhosa deles. Não sei se é influência do Dia Internacional da Mulher que está me deixando deveras sensível, se são meus hormônios, se é a quantidade de filmes românticos que tenho visto ou o excesso de romances que tenho lido, só sei que essa fase “temor” não está combinando nada com o universo romântico ao meu redor hoje.

“Eu não sei viver sem amor”, foram as palavras que o meu amigo usou ao me relatar sua história de amor com uma moça que vive em outro continente. “Beta, você é como eu, precisa de paixão, de bilhetinhos românticos, de cartas de amor, tenho certeza que vai me entender…” afirmou um outro amigo ao me mostrar a carta de amor que fez para a nova namorada. Muitas mulheres dariam a vida para receber uma carta daquelas, e qualquer mulher que lesse aquilo, se derreteria. Comigo, é claro, não foi diferente. Desgraçado! Me fez chorar… e de soluçar!

Tinha um vendedor ambulante no centro da cidade ainda agora rodeado por tanta gente que pensei: “Opa, deve tá vendendo 3 bombons Serenata de Amor por R$1,00, também quero!” . Só quando cheguei perto é que vi que o moço estava vendendo rosas avulsas, cercado exclusivamente por homens. Que lindo !!!

Na avenida Rio Branco estava rolando uma passeata, homens e mulheres protestavam pelos direitos das mulheres. No metrô o vagão estava cheio de moças carregando flores nos braços. Bravo, bravo! Senti vontade de bater palminhas empolgadas de “tiazinha”, e dar saltos de alegria feito criança pequena! Lindo, lindo, lindo!

Aí eu abro a porta de casa e vejo um envelope. De repente me senti num filme… sabe aquelas comédias românticas onde o amor sempre vem, mesmo que chegue pelo correio? Então… mas era só a fatura do meu cartão de crédito que, como de costume, me deixou tensa. “Good bye love, welcome fear!” Medo, muito medo ao abrir o envelope e ver o resultado de um dia de fúria (leia-se TPM), sanado provisoriamente com a compra de um scarpin. Eu disse provisoriamente! Eis que sempre chega o momento fatídico de efetuar o pagamento.

Mas nem a fatura de cartão de crédito mais cara quebraria o encanto do dia de hoje. Nem mesmo o meu pensamento sujo de que seria muito bom se eu tivesse um homem que bancasse as minhas contas, como acontecia antes da minha avó ter queimado aquele maldito sutiã em praça pública!

Eu sigo acreditanto no amor, continuo chorando nos casamentos das minhas amigas, me emocionando com cartas de amor, chorando de boca aberta com filmes e romances de banca de jornal, achando liiiindo de viver constatar que os homens românticos estão se proliferando e, acima de tudo, feliz por ver tanta gente com o coração aberto para amar, mas agora eu preciso pensar num jeito de conseguir mais trabalho para pagar o meu scarpin. Urgente!

Outros scarpins me esperam, e ainda me resta amor… muuuuito amor!

Roberta Simoni

Eu, minha mala e “ela”.

Perder-se

É quando eu penso que ela não virá tão cedo que ela chega sorrateira, de mansinho, no meio da madrugada, prendendo a respiração, andando na ponta dos pés, com os passos lentos como os de um astronauta em solo lunar.

Tanto esforço em vão. Eu já estou acordada. Sou amiga da madrugada, temos um caso e somos fiéis amantes. É com ela que eu penso na morte da bezerra – e na minha própria – contamos carneirinhos, vaquinhas e a fauna inteira, esperando o sono chegar, mas quem chega é ela. E chega sem avisar.

Patética de tão dissimulada com seus passos de astronauta tentando não me acordar. Eu acho até graça, mas não sorrio pra ela. E ela sabe o porquê. Paro de pensar na bezerra, na morte dela, na minha, nas vacas, nos carneiros, e penso agora no astronauta que nunca foi à Lua e até hoje se faz acreditar ter passado por lá. Ai ai… como somos tolos. Acreditamos no que queremos acreditar…

Ela também tem o direito de acreditar que pode entrar aqui sem que eu consiga notar. Deixa… deixa ela achar que não está fazendo barulho nenhum com seus passos desastrados e pesados, com sua respiração profunda e cansada. Me deixa também… deixa eu fingir que não a vi chegar. Ela vai fingir que acredita por alguns dias, até tomar coragem de me enfrentar. Ganho algum tempo inerte até lá.

Lá no fundo, eu sei… uma pequena fração de mim gosta de vê-la chegar e sente até saudade quando ela demora para voltar, enquanto todas as minhas outras milhares de particulas começam a se repelir só de ouvir falar o nome dela outra vez: MUDANÇA!

Passo dias e dias sem lhe dirigir a palavra. Ela, educada, me corteja, abre caminho para que eu possa passar, me leva até à porta de casa quando vou sair, e quando volto, ela está lá, me esperando com um sorriso irritantemente largo. Me lança um olhar desafiador e começa a apelar: ocupa o meu lugar preferido no sofá, se coloca à frente da tevê, deita na minha cama, me empurra durante a noite. Por fim, começa a me incomodar.

E eu sei que ela só vai embora quando eu mudar. Então eu me mudo… mudo de casa, de bairro, de cidade, de país, de planeta. Ela vem comigo, fiel. E garante que só vai embora depois que eu também mudar.

Eu, cansada, carregando uma mala pesada numa das mãos. Sem rumo, sem estrada e sem calçados nos pés, caminho descalça na chuva outra vez. Na outra mão, a mão dela, entrelaçada à minha. Seguimos de mãos dadas, esperando o tempo mudar, e esperamos que eu mude junto com o tempo. Para melhor. Sempre.

Roberta Simoni