Dona Norma, minha avó paterna, nunca se encaixou no estereótipo da avó tradicional dos anos 80. Era uma senhora baixinha e gordinha, fora isso não tinha qualquer semelhança com a Dona Benta. Foi criada de maneira rígida e com rigidez criou os filhos. Não era lá muito maternal, tampouco sutil. Falava aos berros e vivia se queixando da vida. Os domingos de visita à sua casa entrariam para a lista dos mais entediantes nas minhas recordações.
Vovô Chiquinho – que ainda vive mas nem tanto, pois está acamado há muitos anos, em estado vegetativo – era quem conseguia tornar aqueles domingos menos torturantes, sobretudo quando o encontrávamos de péssimo humor. O mau humor era seu estado natural, mas havia dias em que nem ele se suportava e quando calhava disso acontecer num domingo era uma tremenda sorte nossa! O velho rabugento falava e gesticulava sem parar, sempre indignado com alguma coisa ou com alguém, do Presidente da República ao pernilongo, ele sempre tinha o que reclamar dizer.
Era ótimo assistir meu avô dando um espetáculo (ainda que fosse de ira) e meus pais gargalhando compulsivamente. Eu não decifrava muito bem o que eles diziam, mas entendia que estavam se divertindo e ver adultos se divertindo me deixava curiosa e animada. Não era todo dia que eu via um panda, assim como era raro ver um adulto feliz. Uma coisa exótica de tal maneira que eu parava o que estivesse fazendo para assistir.
Vovó Norma, entre uma queixa e outra, oferecia todo tipo de fruta que tinha em casa. E insistia. Insistia. E insistia de novo. Era o jeito dela de demonstrar carinho. Pena que eu só fui me dar conta disso quando já era tarde para aceitar um daqueles pedaços de melancia com afeto.
*Nota: até hoje quando eu fico muito insistente, papai só me olha e diz: “Não queeero, Norrrrrma”. Às vezes é só assim que eu entendo. Cada um tem a herança que merece, afinal.
Minha irmã e eu estávamos mal acostumadas com a nossa avó materna, com quem passávamos a maior parte do tempo. Ela preparava (e prepara até hoje) sobremesas incríveis e abastecia a dispensa com todo tipo de guloseima para receber a “netaiada” toda. Daí vinha a outra vó e oferecia fruta? “Não, não vó, brigada, a gente tá sem fome”. Quando ela se dava por vencida, falava entre os dentes: “ai, crianças chatas!”
Mas era quando ela insistia pra gente almoçar que o bicho pegava. Verdade seja dita, vovó não era boa cozinheira. Exceto meu pai, que jamais concordará comigo, pois tem um paladar nada exigente (além disso, estamos falando mal da mãe dele aqui), nós comíamos sem o menor prazer. Eu e meus primos, inclusive, tínhamos o péssimo habito de enterrar no quintal o que a gente não conseguia digerir. Era uma atitude pouco inteligente, mas achávamos que nunca seríamos descobertos…
Um dia vovó apareceu com uma novidade: foi regar as plantas e deu de cara com uma cobra enorme. E venenosa!
Costumávamos ser crianças destemidas, mas não a ponto de brincar num lugar onde havia uma cobra venenosa à solta, de modo que comecei a passar longe do quintal que – aos meus grandes olhos de menina pequena que enxergava imensidão em tudo – parecia uma floresta, repleta de plantas enormes, pé de tudo quanto era fruta, hortas e flores de várias cores. Era um jardim selvagem e caótico, mas tinha vida. Tudo ali respirava. Era o que fazia dele bonito. Pena que a presença de um bicho peçonhento fez minha pequena selva ganhar um tom sombrio.
Eu, que já era curiosa antes mesmo de me entender como gente, todo domingo chegava lá ansiando por notícias da cobra. Vovó só faltava passar um relatório completo das aparições da bicha. “Hoje mesmo, um pouco antes de vocês chegarem, ela estava atrás daquele arbusto, mas a miserável fugiu quando seu avô foi atrás”. Minha irmã e eu ficávamos com os olhos arregalados, atentas a qualquer movimento rastejante. Por mais que ela garantisse que a cobra não entraria em casa, eu sempre me sentava sobre minhas pernas, temendo ser pega desprevenida e levar um bote.
Com o passar do tempo, a cobra foi ganhando um espaço no quintal e na vida da minha avó que nem ela poderia supor. “Hoje ela estava pendurada naquele abacateiro ali, né Chiquinho?” e meu avô só balançava a cabeça, concordante. Mamãe e papai não se manifestavam. Não alimentavam o medo que vovó tinha plantado na gente, mas também não podiam desmenti-la. Imagino o quão difícil tenha sido para o meu pai, que sofre de excessos, de sinceridade em especial, a ponto de ter nos poupado de lidar com a frustração da inexistência do Papai Noel, por exemplo. Ele nos oferecia a verdade pra variar, já que o mundo se encarrega de oferecer infinitas fomas de ilusão.
Mas a cobra era o espantalho contra netos da minha avó. O quintal era dela e isso lhe dava o direito de colocar um espantalho para cada neto se assim o quisesse. E quem se opusesse a isso teria dois trabalhos: o de confrontar a baixinha invocada e o de se conformar em perder o confronto.
Sei que eu não colocava meus pés miúdos naquele quintal nem por um decreto. Morria de medo. Antes disso uma cobra era só uma cobra, não uma ameaça. Eu gastava minha cota de medos como qualquer outra criança: com fantasmas, monstros e bruxas, embora meus pais tentassem me convencer de que eles não eram reais. A cobra não. Ela existia. E eles não podiam negar.
E eu, que já tinha uma relação ambígua desde cedo com o medo, capaz de me paralisar e de me motivar, comecei a me desafiar a colocar um pé no quintal. Depois os dois. Depois a dar dez passos, tocar no pé de fruta do conde e voltar correndo. Um dia decidi desbravar o terreno à procura da cobra e quanto mais acelerado batia meu coração, mais excitada eu ficava. Tudo ia bem, eu ia vencendo os desafios criados por mim mesma paulatinamente, até vovó descobrir minha ousadia e no domingo seguinte me contar que a cobra deu cria.
Não sei por quantos anos vovó alimentou essa fantasia, também não sei por que ela sentia necessidade de inventar tantas histórias se uma só já bastava para nos manter afastados das suas plantas. Talvez ela tenha passado a acreditar na própria mentira depois de ter contado tantas vezes. A única certeza que tenho é que seu jardim se manteve conservado graças àquela mentira. Só quando estávamos mais crescidinhos e já não representávamos tanta ameaça ao seu quintal, ela contou que tinha encontrado a cobra morta. Cheguei a ficar de luto pela bicha e preocupada com as cobras órfãs.
Ao sentenciar a morte da peçonhenta, vovó matava sua mentira conveniente e a minha fantasia de encontrá-la. Ela só não matou o meu medo porque eu mesma já tinha tratado de dar fim nele algum tempo antes, mais ou menos na mesma época que perdi o interesse pelo seu quintal.
Passei boa parte da minha vida acreditando ingenuamente na existência daquela cobra por um simples motivo: eu não tinha razões para duvidar. Nunca passaria pela minha cabeça que alguém pudesse inventar uma mentira tão cabeluda quando podia simplesmente pedir, proibir ou me educar a não fazer determinada coisa. Era assim que meus pais costumavam agir comigo e isso era tudo o que eu conhecia sobre limites.
Anos mais tarde, quando meu primo contou (achando muito engraçado) que aquilo tudo não tinha passado de uma farsa, eu me senti uma tola. Vovó nunca soube que me magoou, mas se tivesse sido comunicada certamente teria me mandado deixar de ser chata, como fazia quando eu me negava a comer uma de suas suculentas frutas.
A sensação de ter sido enganada não foi a das mais agradáveis, mas não era a primeira vez que acontecia, nem seria a última. E passou longe de virar um trauma, pois não havia potencial para tanto. Dramaturgicamente falando seria até mais interessante se eu tivesse desenvolvido alguma fobia por serpentes ou rancor pela minha avó, mas fato é que nada disso aconteceu. Quando me tornei adulta, lembrava disso de um jeito cômico e com um certo saudosismo de uma fase livre de qualquer desconfiança. E agora, enquanto escrevo, percebo como o quintal e a cobra são simbólicos pra mim.
Quando eu fiz a disciplina de filosofia na faculdade e li sobre o Mito da Caverna de Platão fui automaticamente transportada ao quintal de Dona Norma. A grosso modo, o mito conta que prisioneiros passavam a vida inteira presos numa caverna, de frente para uma parede, onde sombras enormes eram projetadas através da luz da chama de uma fogueira. Eram apenas sombras de coisas que existiam e aconteciam do lado de fora, mas eles acreditavam que eram seres malignos e que se tentassem sair, seriam mortos por eles, dessa forma, o medo os mantinha presos. Quando um dos prisioneiros consegue sair da caverna, descobre a verdade e volta para contar aos outros, ninguém acredita nele e preferem continuar vivendo na caverna.
A base dessas duas histórias é a mesma: uma mentira sendo usada para gerar medo e manter alguém sob controle.
Eu não fui esperta o suficiente para descobrir sozinha que a cobra era um mito, mas fui corajosa a ponto de enfrentar o medo que eu sentia e isso diz muito sobre a pessoa que eu já dava indícios que me tornaria.
Vovó só antecipou um tipo de situação que eu voltaria a enfrentar muitas e muitas vezes no quintal da minha própria vida e na minhas cavernas particulares, algumas das quais eu já me libertei e outras onde ainda sou prisioneira porque nem sequer descobri que estou presa ou porque já descobri mas não encontrei um jeito de sair. E tem também aquelas cavernas onde permaneço porque não me dei conta de que a saída já está desobstruída.
No quintal dos outros há sempre o risco de ser habitado por cobras, então eu piso com cuidado. Algumas vezes eu nem piso, porque já pressinto a ameaça. Há ainda aqueles quintais com placas sinalizando perigo. Automaticamente eu acredito nas placas e não me aproximo, mas às vezes o quintal é tão lindo que eu entro pra conferir se não é como era o da minha avó. Pode acontecer de uma cobra me picar. E pode não acontecer também. Quando vale a pena, eu assumo o risco. Ou assumo que já fui bem mais destemida e não vou. Tem dias que qualquer minhoca me paralisa e não há nada no mundo que me faça encostar meu dedo mindinho num canteirinho.
Quando não há metáfora barata que me convença a sair da minha caverna ou a entrar no quintal do Papa é porque o cagaço tá mesmo grande. Aí eu faço como um sábio amigo me ensinou: vou de fraldas, mas vou mesmo assim.
Do quintal da minha avó só sobrou uma roseira que meu pai plantou lá em casa e colocou uma plaquinha onde se lê “Dona Norma”. Na primavera ela fica linda, apesar de papai raramente podá-la. Suspeito que ele goste de vê-la crescendo desordenada com seus espinhos afiados, arredia como sua mãe. Eu não me atrevia a mexer nela, mais intimidada pelo nome gravado na placa do que pelos espinhos. Até que um dia Arthur, meu sobrinho de cinco destemidos anos de vida, com a ajuda do avô, foi lá, tirou uma rosa e me ofereceu.
Tá bom, Dona Norma. Eu entendi.
Roberta Simoni