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Roberta Simoni

Sensível demais?

Eu faço drama. Olhando assim, nem parece, mas eu perco facinho o tesão na interação com quem não fala comigo na moral, na moralzinha. Detectei modulação no tom de voz, comunicação de textura áspera, palavras com camadas espessas? Parei, na hora. Não entro numa. Como boa carangueija que sou, reajo me fechando na concha. Meus pais me ensinaram a tratar todo mundo com a maior finesse e se não rola reciprocidade no trato, cabô o papo. Mas me garantiram que isso é fazer drama. O certo mesmo é ficar de boa com quem não é cauteloso com o jeito de falar com os outros. O problema é a hipersensibilidade do receptor, e não a falta de tato do transmissor da mensagem.

O mundo tá tentando me convencer que ser sensível é um defeito, e, depois de refletir muito a respeito, eu conclui que a sensibilidade só é considerada uma falha por aqueles que não possuem o mesmo traço na personalidade. Ser sensível também não é qualidade, é apenas uma característica de quem é receptivo à impressões sensoriais.

Um diálogo entre dois sensíveis se dá assim: ambos são empáticos aos sentimentos compartilhados. Um diálogo entre opostos normalmente termina com o insensível achando o sensível melindroso ou dramático demais e o sensível decidindo que o seu interlocutor foi indelicado. Agora, uma conversa entre dois insensíveis, não sei bem como funciona, pois não tenho parte nisso, mas deve ser bem mais prática. Ou mais perigosa.

Eu tive um chefe que me disse que tinha que ter muito cuidado com a forma como falava comigo porque percebeu que eu era “sensível demais”. Eu respondi que, na verdade, ele tinha que medir as palavras comigo porque eu era forte o suficiente para reagir às grosserias dele e não admitia ser desrespeitada. Pelo menos ali, naquela ocasião, as definições de sensibilidade foram atualizadas com sucesso.

As pessoas, sobretudo os homens, confundem sensibilidade com fragilidade. A verdade é que quanto mais sensível você é, mais te consideram difícil de conviver, não só porque você tem uma reação pra tudo (boa ou ruim), mas porque elas têm que pensar duas vezes antes de falar, porque precisam ponderar e medir as palavras antes de cuspi-las. Mais do que chato, isso é trabalhoso demais. E ninguém quer ter trabalho. Manutenção de qualquer tipo de relação despende muita energia.

Eu sou intolerante à desrespeito, ingratidão e lactose, mas até agora só descobri como evitar o leite mesmo. Os outros ainda me causam uma baita indigestão.

“Quanto mimimi!” – quase posso ouvir o pensamento de um insensível enquanto lê esse texto.

Sabe qual é a tradução para “mimimi”? Tudo aquilo que dói no outro e não afeta você é mimimi.

Cê num imagina a vergonha que eu tenho de lembrar que eu já chamei de mimimi (e ainda fiz vozinha irônica e careta na hora de falar) os dilemas alheios, até entender que têm coisas que doem mais nos outros do que em mim e vice-versa. Eu também já cometi a indelicadeza de dimensionar o problema do outro comparando ao meu. Esse erro eu ainda preciso me vigiar pra não cometer quando me distraio.

Sabe quando eu sou bem dramática? Na hora de ir ao supermercado porque pra acho essa função um suplício, ou pra ir pro médico, mesmo quando eu tô cheia de dor. Faço drama pra ligar pra operadora do celular, do cartão de crédito ou pra qualquer tipo de estabelecimento. Transformo a maioria das ações práticas do dia a dia em um bicho de sete cabeças. Sou péssima com burocracias e pra lidar com pessoas – pasme! – insensíveis. Vivo dizendo que “a morte é mais suave” do que ter que fazer qualquer uma dessas tarefas. Drama Queen. Tem nem como me defender. Agora, quando eu estou falando sobre aquilo que estou sentindo, não chama de drama, não.

E já que eu tô pistola, vou mandar um recado: é melhor pensar bem antes de reduzir o que eu sinto ou invalidar o que eu digo me “acusando” de ser canceriana. Senão, senão… eu vou chorar, rsrs.

Brincadeira! Eu só vou mandar você se foder mesmo (ainda bem que você não vai se ofender, porque ofensa é coisa de gente dramática, né?!)

Roberta Simoni

Uma carta ao passado

Querida Beta,

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Você está com 11 anos agora. Ainda não sabe, mas esse braço quebrado aí vai te trazer mais dores além daquela que você sentiu quando sua mãe, tio Carlinhos e os enfermeiros tiverem que te segurar pro médico colocar seu osso exposto no lugar. Foi um dia horrível, né? Mas preciso te preparar para o que ainda está por vir: o osso não vai colar e você vai precisar fazer cirurgias, fisioterapia e aprender a escrever e a limpar a bunda com a mão esquerda.

Sorte nossa ter uma família tão incrível, que vai nos ajudar a passar por tudo isso. Na escola, os meninos vão se referir a você como “a baixinha-gordinha-de-braço-quebrado” e isso vai te aborrecer, mas não liga, não. Daqui a uns três anos você vai ficar tão gata que esses mesmos meninos vão fazer de tudo pra te conquistar. E você, é claro, vai dar o toco em todos eles.

Aos 13, você vai começar a trabalhar e nunca mais vai parar. Vai conseguir juntar um trocado e sairá de Cabo Frio aos 18. Lembra quando você brincava de casinha e sonhava em morar sozinha na cidade grande? Você vai conseguir, garota! Aliás, você vai viajar bastante e morar em muitos lugares. Ao longo desses 35 anos você vai se mudar 21 vezes. Não é incrível? Cansativo também, eu sei, mas imagina só quantos lares você vai poder decorar?!

Você vai virar jornalista. Depois, fotógrafa. Vai ter uma máquina só sua e vai fazer trabalhos lindos, mas vai cansar dessa profissão depois de alguns anos e vai estudar pra ser roteirista. Sabe o que é isso? É uma pessoa que escreve histórias. Isso mesmo, você vai poder criar vários mundos através das palavras. Vai lançar um livro, vai trabalhar na rádio, no jornal e na TV e vai virar dramaturga… aquela pessoa que escreve peças de teatro, sabe? Mas não se empolga muito, porque você não vai ser famosa e só vai ganhar dinheiro suficiente pra se sustentar, o que já é uma baita conquista.

Eu sei que isso pode te chocar, mas até hoje eu não tenho um carro, nem uma casa. Ah, e eu não casei, só morei junto, mas foi uma derrota. Fica tranquila, porque eu ainda não tive um filho. Mas eu tenho uma cã linda chamada Wilma. Sim, o mesmo nome da nossa tia-avó. É uma homenagem a ela, que vai partir daqui a uns 15 anos, mais ou menos. Aproveita e enche ela de beijos enquanto ainda pode.

Você vai se apaixonar muitas vezes, vai ter seu coração partido e colado com durepox, mas vai sobreviver, calma. E vai viver momentos extraordinários e fazer amizades inacreditáveis de tão maravilhosas. Vai beijar meninos e meninas, tipo na música do Renato Russo que você adora. Daqui a 20 anos você vai viajar sozinha, primeiro pra Itália, depois pra um monte de outros países. Aliás, preciso te pedir um favor: não mata as aulas de inglês! Você não imagina quanta vergonha vai me poupar de passar se você se dedicar a aprender essa língua. Eu já fiquei perdida numa estação de trem na Bélgica gritando “Help, I’m lost!”, daí os belgas vieram me socorrer e eu não consegui explicar pra onde estava tentando ir… tá rindo, né? Parece engraçado agora, mas na hora deu até caganeira de tanto nervoso.

Você vai descobrir que tem depressão lá pelos 28 anos, e por mais difícil que seja, toda essa angústia e melancolia que você sente vão passar a fazer sentido depois desse diagnóstico. Sim, a gente toma remédio controlado todos os dias pra suportar viver nesse mundo. Mas são coisas da vida, meu bem. Não fica triste.

Ah, você não é adotiva, tá? Não acredita? Eu posso provar. Chega perto de papai agora e olha os pés dele. Olhou? São idênticos aos nossos, viu? Os dedos completamente tortos. Mas, pensa: eles funcionam, é isso que importa! Para de ficar se escondendo em calçados fechados. Aliás, o quanto antes você aceitar suas imperfeições e se livrar de tudo que te aperta ou te cobre demais, melhor. Você vai chegar até a perder a dignidade numa noite de bebedeira, mas a barriga, nunca.

Se eu te contar que mesmo assim você vai pedalar pelada numa manifestação nas ruas do Rio de Janeiro, você acredita? Hahahaha! Menina, eu fiz isso pra poder contar pros nossos netos um dia, mas como ainda não tivemos filhos, tô adorando poder contar pra você. Queria ver a sua cara agora!

Eu tenho tanta, mas tanta coisa pra te contar. Vou tentar te escrever todo ano, tá bem? Essa primeira carta está chegando agora graças aos meus alunos, que me inspiraram (demais a gente ter alunos, né, Betinha?). Eu os ajudo a escreverem textos criativos e eles me ajudaram a lembrar de você.

Agora, vá brincar com a sua irmã e suas primas. Pode entrar no rio com saco plástico no braço sem medo. Vai molhar de qualquer jeito, mas não importa, porque esse gesso não vai resolver nada mesmo.

Aproveita Sana por mim. Mesmo depois de tantos anos, esse continua sendo um dos nossos lugares favoritos no mundo todinho. A próxima vez que você estiver aí, já vai ter energia elétrica, sabia? Então larga o minigame e vá olhar as estrelas. Ah, e pede pra tio Paulinho tocar Vander Lee no violão. Ele não vai entender nada agora, mas um dia vai achar que você tem o dom de prever o futuro. E você tem mesmo. Mas não conta pra ninguém. Segredo nosso, tá bom?

Quanto à fratura exposta no braço, tenha em mente que ela não é nada perto das fraturas que você vai sofrer nos próximos anos, só que na alma. Mas eu estarei contigo, prometo. E o nosso anjo da guarda também. Te falo dele numa próxima carta. Estamos nos conhecendo melhor agora, mas já te adianto que ele é um cara fenomenal e ele te adora e te acha uma menina fantástica, e você é mesmo, apesar de todo o trabalho que dá pra ele.

Até breve, amor da minha vida!

Roberta Simoni

Donas das Divinas Tetas

“(…) Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas”

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A primeira vez que eu vi mulheres com os seios de fora nos blocos de rua do Rio de Janeiro foi em 2017. Não faz muito tempo. E eu estava com a Ana, essa morena maravilhosa que aparece do meu lado esquerdo na foto. Nesse mesmo ano, eu conheci a Maria, essa deusa, louca e feiticeira, que está do meu lado direto. Na foto e na vida.

Naquele carnaval, tínhamos recém sofrido o golpe e gritávamos “Fora Temer”. Os protestantes já invadiam o Senado. Mesmo assim, ainda não imaginávamos que o pior estava por vir. Eu olhava admirada para as mulheres com os seios à mostra nas ruas do centro da cidade e me emocionava ao achar que estávamos progredindo. Errei feio, errei rude. O resto da história vocês já conhecem: de lá pra cá, regredimos tanto que, em 2020, sair assim no carnaval passou a ser um ato ainda mais revolucionário e de afronta.

Em tempos sombrios como os de agora, a sensação de liberdade de bancar essa atitude, mesmo que não passasse de uma sensação efêmera, foi maravilhosa. Homem nenhum nunca vai entender isso. De direitos de uso do próprio corpo adquiridos na base da afronta, entendemos nós.

E entendemos tanto que admiramos quando nos deparamos com uma mulher que se banca, se aceita e se liberta de travas, regras e tabus. Foi com essa admiração que nós fomos acolhidas por outras mulheres, nas redes sociais e nas ruas. Nos paravam pra dizer que estávamos lindas, que admiravam a nossa atitude. Algumas vinham nos abraçar e nos agradecer. Isso foi de uma beleza sem igual.

Sair com as nossas divinas tetas à mostra, num ato “socialmente profano”, foi também resultado de uma força crescente e uma consciência que foi tomando forma paulatinamente graças ao movimento feminista, que nos provoca a questionar e a dizer: “peraí, não somos nós que temos que esconder nossos corpos pra não atiçar o instinto sexual dos homens. São eles que precisam se controlar.”

Eu sinto atração por homens e nem por isso saio agarrando eles na rua.

Eu não tô mais disposta a me esconder com medo deles. Eu não admito mais achar que meu corpo ou a quantidade de pano que me cobre são gatilhos pra estuprador. Eu não aceito mais ter vergonha das minhas divinas tetas, estando elas de fora ou simplesmente com os mamilos marcando na camisa. E é por isso que agora eu entendo que, de fato, o que a gente fez foi um ato de coragem. Aqui ou em Olinda, protestando com centenas de mulheres de peitos de fora no bloco da Vaca Profana, ou fazendo nossa manifestação singela num bloco no Rio.

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Como disse (sabiamente – as usual) a minha amiga Oksana: botar os peitos de fora e sair na rua não é prova de estar 100% resolvida com tudo e não ter nem um pingo de receio das consequências. É encarar mesmo com receio. Coragem não é ausência de medo (isso é imprudência), coragem é ir com medo mesmo.

“Você acha que essa é uma forma legal de se expressar sobre o feminismo, Roberta?” – dentre as críticas que recebemos, as cobranças surpreendentes que sofremos, uma de nós por parte da família, outra por parte do parceiro ou dos colegas, essa foi uma das perguntas que me fizeram. E eu respondo: acho que é UMA DAS, sim. Homem tentando invalidar o conhecimento de causa da mulher é puro Mansplaining.

“Vocês estão sendo muito radicais” – outra acusação clássica! Agora somos feministas radicais e raivosas porque usamos nossos corpos como forma de expressão e manifestação. A quem estamos ofendendo? Então, se é pra servir de entretenimento pra homem, tudo bem colocar os peitos pra fora, mas se é por um ato político ou simplesmente porque sentimos vontade de mostrar as peita, não pode? Não tem cabimento.

Assim como não tem lógica reduzir a causa feminista a botar as tetas pra fora num bloco de carnaval. A gente tá aí há séculos lutando pela igualdade em todos os campos da vida, pela equidade salarial, pela liberdade de escolha e sexual, pelo direito de ir e vir sem ser assassinada no caminho, pura e simplesmente por ser mulher. A nossa luta é grande, a lista é imensa e infelizmente a batalha tá só começando. Não vem reduzir nosso ato de coragem e autoaceitação à simples necessidade de exibição, porque nossa atitude também diz respeito à tentativa insistente de dar um basta na objetificação do nosso corpo, que nos leva a sofrer 90% dos abusos e desigualdades citadas no começo deste parágrafo.

O que você vê nessa foto são só corpos de mulheres LIVRES. Não classifica crime de “atentado ao pudor”. Não gostou? Não olha!

Essa atitude, aparentemente inofensiva, mexeu com as minhas estruturas de um jeito surpreendente. Eu devo muito ao movimento feminista, que se mostra presente e atuante até mesmo quando eu acho que tô distraída. Eu nunca tô, na verdade. Basta olhar pro meu lado: as mulheres que caminham comigo não estão ali por obra do acaso. Eu escolho quem me fortalece, e elas me escolhem pelo mesmo motivo.

Junte-se às mulheres que já despertaram. Nós somos a revolução. Nós seguimos promovendo a transformação que as bruxas das nossas bisavós começaram lá atrás para que, quem sabe, as nossas bisnetas possam gozar da liberdade que perseguimos.

Roberta Simoni

“(…) Deusa de assombrosas tetas

Gota de leite bom na minha cara 

Chuva do mesmo bom sobre os caretas”

Sobre render-se completamente ao universo

As coisas só começam a melhorar (ou a parecer menos piores) quando a gente se rende completamente ao universo – excelente frase de efeito pra ser usada em legenda de selfie fazendo biquinho ou no espelho da academia, mas, óh… pra pôr em prática complica um cadim, e não tem filtro bonitinho que dê jeito.

Eu tô aí tentando entender por que custo tanto a me render. Acho que tem a ver com gênero. Mulher é resistência purinha, do dedo mindinho ao último fio de cabelo. Resistir é nosso instinto natural. Deve ser por isso que mesmo em situações que pedem rendição instantânea, a gente não se entrega fácil, não.

“Mãos ao alto, isso é incontrolável” – grita Descontrole, um temido bandido não procurado, que exige: “passa tudo, madame”, me obrigando a entregar as minhas certezas banhadas a ouro, as convicções de prata, as pérolas de planos e as expectativas de 256 gigabytes e 12 megapixels que eu ainda tô pagando prestações à perder de vista. “Perdeu, perdeu!”

Ainda tento reagir e argumentar com o bandido. “Moço, deixa eu salvar pelo menos as certezas? Elas têm valor afetivo pra mim!” – eu imploro, mas ele arranca tudo da minha mão e sai correndo. Escapa por um beco escuro que dá na Rua dos Bobos, nº 0, uma casa muito engraçada, que não tem teto, não tem nada, nem parede, chão ou penico, mas que foi feita com muito esmero pelo Seu Controle, engenheiro renomado no ramo da construção civil.

Ele projeta casas tipo aquelas de revista de decoração, que ninguém tem, mas que todo mundo sonha em morar. “Tudo ilusão”, papai diz entre os dentes, e eu sei que ele não tá se referindo à casa toda chiquetosa, mas ao controle sobre as coisas. Papai é envolvido com tráfico de verdades, trabalha pro chefe lá da boca, Zé Realidade.

Papai acha que esse trabalho fez ele se render completamente ao universo, mas na realidade não é tão-tão completamente assim, não. Talvez ninguém consiga se render por inteiro a tudo, sempre tem aquela situaçãozinha desconfortável, aquele serzinho miserável que a gente ainda fica tentando aprender como lidar, até sentenciar: eu me rendo, não sei mais o que fazer com isso, cuida aí universo (ou deus, deusa, como você gostar de chamar aquele para quem você entrega tudo aquilo que não consegue gerenciar).

Veja bem, eu tô falando de render-se, não de desistir. São coisas parecidas, mas destintas.

Ok também se desistir, geralmente não é demérito nenhum e requer muita coragem, mais até do que insistir. Mas render-se exige mais do que coragem, exige uma confiança sobre-humana numa energia que você nem sequer pode ver, tipo deus, que funciona como uma espécie de gerenciador de problemas que não são da sua alçada.

(Dica rápida: se o causo for material, tem um mecanismo simplesinho pra conseguir render-se: entendendo que não tem renda suficiente, ou lembrando do imposto de renda. Nesse caso, o lance de “mãos ao alto” não é figurativo.)

“Dá aqui que eu cuido disso” – frase muito usada por mães e esposas, que é mais ou menos o que o universo diz quando estamos tentando fazer uma parada que não temos a MENOR aptidão pra fazer. Pior: que muitas vezes não temos que ter porque não é da nossa conta, por mais que envolva os “nossos” problemas, essa interferência só atrasa o rolê.

O negócio é o seguinte: tentou de um jeito, tentou de outro, falou com o deus e o mundo, fez o diabo a quatro e a coisa não rolou ou continua rolando, é hora de abrir os braços, fechar os olhos e se atirar no colo do universo. Niqui a gente finalmente chega ao ponto de se jogar, quando abre os olhos, percebe que caiu numa rede. O alívio é tão grande que começa até a se balançar pra sentir a brisa. E, olha, eu tô pra experimentar vento mais suavão que aquele que bate no sul da sensação de ter feito tudo que podia.

Roberta Simoni

 

“Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.”

(Clarice Lispector)

As definições de autossabotagem foram atualizadas com sucesso

É com muito pesar que venho através desta crônica contar que descobri mais um defeito meu de fabricação. É uma lástima, mas a garantia já venceu há tantas décadas que não tem nem onde se queixar, não tem ouvidoria pra ligar ou loja pra ir e tentar trocar. Tarde demais. Me devolver eu também não vou, então o jeito é ir tentando fazer uns reparos aqui e ali e pra tentar ficar minimamente funcional.

Se você tá pensando que eu tô aqui falando sem parar pra enrolar e não contar o meu defeito recém-descoberto, você deve estar sentindo calor, pois está coberto de razão.

Eu descobri uma técnica minha de autossabotagem muito antiga e, pro meu desespero, muito eficiente. Funciona assim: eu tenho uma coisa pra fazer, mas essa coisa pode esperar, tipo lavar a louça, aí eu vou adiando, porque embora me incomode, não incomoda o bastante pra eu resolver logo. Mas aí, quando aparece uma coisa importante pra fazer, que pede prioridade, instantaneamente a limpeza da louça se torna urgente.

As coisas que merecem atenção de verdade, recebem uma atenção desatenciosa. É como se eu desviasse atenção daquilo que realmente importa pra eu não me apavorar com a importância de executá-la. Aí eu vou ali e pá, lavo uma louça, dou uma varridinha na casa, arrumo a escrivaninha, organizo o estante de livros por cores pra ter a sensação de que eu tô preparando o terreno pra fazer “a grande tarefa”. Ou, pior: faço as pequenas tarefas pra ter a sensação de que pelo menos eu consegui fazer alguma coisa, caso eu não consiga executar a grande tarefa. Ou, pior ainda: faço as pequenas tarefas primeiro pra ter o argumento de que não estou conseguindo fazer a grande tarefa porque estou abarrotada de pequenas tarefas pra fazer, ou seja, crio uma desculpa concreta pra convencer a mim mesma de que não tinha mesmo como fazer.

Quando se trata de um trabalho remunerado, a ordem é inversa. Priorizo sempre as urgências de forma prática e automática. Quando alguém / alguma empresa tá me pagando pra fazer uma coisa, entendo que se eu não for eficiente, vou prejudicar quem está confiando uma missão a mim. Nem me esforço, vou lá e faço sem pestanejar. É tipo gago tentando falar sem gaguejar, daí quando sobe num palco e começa a cantar, não gagueja, como quem vira uma chavinha. Na hora de trabalhar pros outros, eu funciono instantaneamente, e na hora de fazer qualquer coisa pro meu próprio benefício, eu desfunciono.

Exemplos práticos de prioridades que não priorizo: estudar inglês, preparar meu portfólio, me exercitar, escrever o próximo capítulo do meu livro e por aí vai. Todos esses estão na pasta das “Grandes Tarefas”, que é uma subpasta da pasta “Adiáveis”.

Não que a lavagem da louça não seja importante. É, mas tudo bem se ficar pra depois porque isso não vai causar nenhum grande impacto no meu futuro. Já o portfólio que eu deixo de fazer, por exemplo, vai influenciar diretamente no meu futuro, quando alguém pedir meu portfólio pra avaliar meu trabalho e eu não tiver ou quando pintar uma vaga incrível que exija inglês fluente e eu ainda não souber falar. Esse último é um clássico na minha vida. Se eu estivesse dando exemplos hipotéticos já seria deprimente, mas imagine você que esses são só alguns relatos.

Esse texto é só um lembrete pra mim mesma de que sou eu quem cria os maiores obstáculos da minha vida, de como eu sou a causadora dos meus maiores problemas e, por consequência, sou a única que pode criar estratégias para se livrar deles. E se esse texto caiu no seu colo assim, do nada, desculpa o tapa na cara, mas alguém precisava te acordar pra vida também, meu anjo.

(Ah… é possível que este texto tenha saído porque eu tinha alguma coisa mais importante pra fazer? É, sim.)

Roberta Simoni

Não tô vendo elefante nenhum

Era uma vez uma menina que sonhava em conhecer o zoológico. Um dia, seus pais realizaram seu desejo e ela ficou muito feliz. Fim.

Se tivesse sido assim, essa história – que aconteceu há 30 anos – não teria graça nenhuma. Nem teria história pra contar. Seria apenas mais um episódio de mais uma família que foi ao zoológico, viu uns bichinhos lá e pronto, acabou. Mas o que aconteceu, na verdade, foi uma odisseia que merece ser contada.

Pra começar, o zoológico mais próximo da cidade onde eu nasci fica a mais de 160 km de distância. Minha irmã, Elisa, tinha seis anos e vivia pedindo pros nossos pais levarem-na lá. Ela sonhava em ver os bichos de perto, especialmente o elefante.  Eles resolveram realizar o sonho da primogênita, planejaram a viagem com antecedência, pensaram em todos os detalhes (ou quase todos). Eu, no alto dos meus três anos de idade, não dava conta de muita coisa. Onde quer que me levassem eu só queria correr e subir onde não podia pra fazer o que não devia, feito uma criança hiperativa, só que naquele tempo chamavam crianças assim de levadas ou arteiras. Enfim. Prossigamos, pois não estamos aqui pra falar de mim.

Era o ano de 1987, meu pai tinha uma brasília vermelha mágica. Isso mesmo, mágica, porque só magia explica o fato misterioso de oito seres humanos terem conseguido viajar dentro dela, saindo de Cabo Frio com destino à Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro (mas se vocês perguntarem pros meus pais, eles vão garantir que o destino foi o inferno mesmo).

Era verão, fazia um calor senegalês, uma brasília (sem ar-condicionado, naturalmente) transportava quatro adultos e quatro crianças – de três a sete anos. Eu, minha irmã e dois meninos, filhos dos amigos dos meus pais, um casal que era muito próximo deles naquela época, tão próximo a ponto de achar super normal se enfiar dentro de uma brasília com eles, todas as crianças juntas e cair na estrada pra levar seus filhos pra ver um monte de animais enjaulados e entediados, coitados (dos animais e desses pais).

Abre parêntese: quando comecei a escrever esse texto, fui confirmar com minha mãe se isso realmente aconteceu ou se foi fruto da minha imaginação. Mas não foi, realmente aconteceu. Minha irmã e eu fomos criadas por adultos que nos colocavam pra viajar dentro de brasílias (de duas portas!!!) superlotadas. Isso explica muita coisa.

Outro parêntese: coloquei a brasília no plural porque acho que soa mais traumático numa reconstituição dramática. Fecha parêntese.

Voltando à odisseia: lá fomos nós para a cidade grande conhecer o grande elefante. No caminho, minha irmã, sonolenta, já se queixava da demora, do calor, da vontade de fazer xixi. Eu me ocupava brigando por espaço com o menino que tinha a minha idade e que também queria sentar bem no meio, onde eu fazia questão de anunciar que era o MEU lugar, pois o carro era do MEU pai. Tá?

Uma mulher já nasce com poder de argumentação maior que o dos homens. Assunto encerrado, o meio era meu pra eu me apoiar nos dois bancos da frente, olhar a estrada e perguntar a cada dois minutos se faltava muito pra chegar. Quanto ao cinto de segurança, parece que isso não era tendência nos anos oitenta. Cadeira pra transportar criança então, nem pensar. Acho que nem tinham inventado ainda. Se tinham, não chegou em Cabo Frio.

Chegamos no zoológico e lembro de ter escutado duas frases muitas vezes, com algumas variações: “Elisa, olha ali o macaquinho (o coelhinho, o jacaré, o passarinho, etc)” e “desce daí Roberta, não encosta aí Roberta, volta aqui, Roberta…

Na minha família, a regra é clara: só me chamam de Roberta quando tô fazendo merda. Na “maior parte” do tempo, sou Beta. E não me lembro de ter sido chamada de Beta nenhuma vez naquele dia.

Meus pais se esforçavam pra Elisa se interessar pelos outros bichos enquanto a ala do elefante ainda estava distante. Mas ela estava determinada a ignorar todos os animais. E os nossos pais. Eu, no caso, estava ocupada fazendo o que sempre foi minha especialidade: ocupar os dois.

Conforme o passeio foi avançando, Elisa resolveu trocar o interesse obsessivo pelo elefante pelo desejo incontrolável de comer e descansar. E minha irmã possui dois traços muito marcantes na sua personalidade: a determinação e o mau humor quando está: 1- com fome, 2- com sono e 3-cansada de andar.

“Mas a gente já tá quase chegando no elefante, Elisa. Só mais um pouquinho.” (ah, é… essa frase também foi muito usada naquele dia!)

Eis que finalmente, alcançamos o tão esperado-desejado-sonhado-salve-salve elefante, e…

“Não tô vendo elefante nenhum!”

Eles insistiram: “Filha, olha o elefante, que lindo!”

“Não-tô-vendo-elefante-nenhum!”, ela sustentou, até o fim, se recusando a olhar pro animal.

Não teve jeito, àquela altura, minha irmã não estava vendo mais nada. Elefante, ou girafa… nada era maior do que sua fome. Ela seria capaz de comer um elefante, mas de vê-lo, jamais.

Imagino a frustração do pai e da mãe, a vontade jamais verbalizada de pegar aquela criança e jogar na jaula dos leões.

Elefante devidamente desprezado, fomos lanchar. Minha irmã recuperou o vigor. E o pedido insistente da vez (das quatro crianças) era: “quero ir no museu, me leva no museu? vamos no museu, por favor!” (eu gostaria de saber como as crianças são capazes de fazer tantos pedidos, de sentirem tantas vontades urgentes que, se não forem realizadas imediatamente, parece que não vão sobreviver. Ou, o que é mais provável, não deixarão que seus pais sobrevivam).

Corta para: dentro do museu, eu no colo da minha mãe e Elisa no colo do meu pai. As duas dormindo o sono dos justos. O outro casal na mesma situação. Quatro adultos carregando suas respectivas crias completamente apagadas, que entraram e saíram do museu sem ver nada, tal qual o elefante.

Na hora de voltar pra casa, na saída do zoológico, um cachorro leproso que passava por ali, fez as duas meninas se derreterem. “Olha pai, olha mãe, que cachorrinho lindo!”. Os pais das meninas se olharam e caíram na gargalhada. Era isso ou chorar. Não restava muito mais o que fazer.

Moral da história: não faça as vontades dos seus filhos… brincadeira! Na verdade, não tem nenhuma mensagem moral aqui, mas tem uma história muito boa, que cresci ouvindo meus pais contando, às gargalhadas. Mais do que isso: tem uma piada interna maravilhosa, que merece ser compartilhada com o mundo. E usada, por que não? “Tejem” à vontade. 

Na minha família, toda vez que estamos em alguma situação desagradável, num lugar com pessoas chatas, ouvimos alguma coisa que não tem a mínima graça, estamos cansados ou de saco cheio, falamos: “não tô vendo elefante nenhum”.

Algumas vezes usamos como um código secreto: “Tá vendo algum elefante?”, “Não”, “Nem eu”, “Vamos embora?”, “Agora!”

Só mais tarde, minha irmã descobriria que, na vida adulta, ver elefantes seria bem mais penoso do que foi naquele dia. Eu também não demorei a perceber isso. E vejo cada vez menos. Parece que estão em extinção, os pobrezinhos. Uma lástima!

Nessa foto se vê: 1- duas crianças derrotadas, que não estão vendo elefante nenhum. 2- uma menina sem modos que só queria andar sem camisa. 3- Freddie Mercury sentado bem na frente dessa menina (e ela não pediu um autógrafo!!! Céus!)

Roberta Simoni

Notas de insights aleatórios

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– Tá comprovado: não sou boa em retribuir recadinhos e felicitações de fim de ano (ou de qualquer data comemorativa), mas no restante do ano você pode ser surpreendido com uma demonstração de afeto da minha parte a qualquer momento. E isso deve valer alguma coisa.

– Procuro comparecer a todos os meus momentos. Os bons e os maus, vivendo de corpo e mente presentes. É uma pena não poder dizer o mesmo dos eventos sociais que vou. Quando vou.

– A bula do remédio diz que minha libido pode diminuir e instantaneamente eu já acho que tô broxa. Todo mundo sabe que não se deve ler bulas. Mas o que se deve fazer quando se é o tipo de pessoa que sabe que não deve fazer determinada coisa, mas faz mesmo assim? E se a resposta estiver numa bula? Nunca se sabe.

– Meu novo corte de cabelo me faz lembrar a Velma, do Scooby-doo. E isso me faz sentir muito pouco atraente. E tudo bem.

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“Gente, a Velma disse gente!”

– Eu ainda não tenho nenhuma tatuagem no meu corpo por um único motivo: adiamento de escolhas, sobretudo as definitivas.

– Eu acho que quando a gente recebe uma má notícia, é demitido, leva um pé na bunda, perde dinheiro ou a dignidade, devia ganhar discurso do Bial como prêmio de consolação. Um “vem chorar aqui fora” parece menos desconfortável do que um “se fodeu”…

– Não adiantou nada você deixar uma camisa aqui se ela tá limpa. Se eu quisesse sentir cheiro de sabão ou amaciante, ia na lavanderia ou na minha área de serviço.

– Comi seu prestígio. Desculpa, mas você me arrancou suspiros e comeu meus sonhos primeiro e não me viu me queixar disso.

– Se eu perdesse o controle da minha vida com  a mesma frequência com que perco o controle remoto da televisão, tava ótimo. E olha que perco bastante o controle remoto.

– Você tá lá, vivendo sua vidinha e pá! Num piscar de olhos tudo muda. O tempo todo. Tudo-muda-o-tempo-todo. A gente precisa começar a assimilar isso, gente. Sério.

– Escolho melhor meus interlocutores para não ter que ficar escolhendo minhas palavras.

– Elegi algumas pessoas que falam o mesmo idioma que eu para gastar meu vocabulário porque descobri que desperdiçar verbo é tão grave quanto jogar comida fora.

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– Numa realidade paralela, quando tá calor, eu posso entrar na minha geladeira, que é, na verdade, uma passagem secreta pra uma praia paradisíaca, onde eu fico deitada numa rede sob a sombra de uma frondosa árvore, lendo o dia todo e tomando o sorvete que o moço bonitão do picolé vem trazer pra mim.

– Invejosos dirão que estou plagiando Nárnia, mas estou apenas fazendo uma pequena adaptação porque não sou obrigada a gostar de floresta com neve.

– Ainda não descobri o que fazer com as azeitonas que eu costumava transferir do meu prato pro seu.

– E se Deus fosse travesti? Cara, se Deus fosse travesti ia ser demais. Só queria ver a cara de vocês!

– Liberdade sexual não existe. Não para as mulheres. Ponto final.

– De um tempo pra cá, superlativos e advérbios de intensidade começaram a me incomodar muito. Por exemplo, esse “muito” aí na frase. Qual a necessidade? Nenhuma. Mesmo porque, se eu for parar pra pensar, eles nem me incomodam taaaanto assim.

– Viver é um ato de coragem.

–  Quantas pessoas cabem dentro de um ser humano só? Eu ainda não consegui somar meus habitantes. Você já?

– Frequentemente me vejo em situações tão surreais que me sinto como se tivesse acabado de sair do cinema. Levo um tempo pra entender onde eu tô, pra onde vou. O que tá acontecendo?

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– Não importa o tamanho dos fones de ouvido que eu uso durante minhas viagens diárias nos transportes públicos, as pessoas sempre vão ignorá-los e me escolher pra pedir alguma informação. Isso deve significar alguma coisa… mas eu tô com preguiça de pensar a respeito agora.

– O mundo tá mais moderno e eu, démodé. Tenho um celular todo metido à besta, mas continuo a mesma besta quadrada.  Ainda escrevo bilhetes, cartas, e acho meus cadernos mais eficientes do que smartphones. Pelo menos eles não ficam sem bateria.

– Comecei a levar a sério o uso do filtro solar, finalmente. Mas isso não significa que tomei juízo. Eu tomei, no máximo, dois goles de café hoje de manhã pra despertar e um baita susto quando vi meu reflexo no espelho.

– Tenho me voltado, com cada vez mais atenção, para as minhas emoções. E para o papel que elas desempenham na minha rotina.  E descobri que não há nada nessa vida que me abale mais do que o amor.

– Onde o amor prevalecer, lá vou permanecer. E onde tiver ar-condicionado também.

– Não olha agora, mas 2017 chegou e janeiro já tá na metade!!!

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Roberta Simoni

Dane-se o transtorno, precisamos falar sobre separação

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Já faz um ano que falei para o meu ex-marido que eu não queria mais estar casada com ele. A dor dessa decisão, que já vinha crescendo antes desse dia, se esticou por mais alguns, quando, de fato, consegui ter forças para sair de casa. Foi uma dor larga, longa e profunda e, apesar disso, é uma dor que eu recomendo para casos de infelicidades largas, longas e profundas, porque quando ela passa…  quando passa é substituída por uma paz tão boa e generosa, que faz a gente pisar mais leve no mundo, que antes pesava tanto nas nossas costas.

Hoje, quando acordei sozinha, lembrei que faz mais de um ano que acordo sozinha e não doeu. Já não dói há muito tempo. Lembrei de todas as manhãs que eu acordava sozinha porque ele estava dormindo na sala pela milésima vez por causa de alguma birra sem sentido. Eu olhava pra ele, dormindo todo espremido naquele sofá que eu detestava – e tinha deixado que ele escolhesse pra não gerar mais uma briga inútil – e pensava no desperdício. De tempo, de energia, de vida. E de lençóis de casal, que só eu usava pra tentar cobrir minhas angústias, que cresceram até ficarem descobertas, com os pés de fora.

O sofá ficou. Eu fui embora.

É claro que nós tivemos momentos felizes ao longo dos anos que passamos juntos. E nos agarrávamos a eles porque foram reais e tínhamos a esperança de que voltassem a ser. Alguns ficaram registrados em fotos, vídeos, textos. E era através desses registros que a maioria das pessoas nos enxergava, como se fôssemos tão permanentes quanto imagens congeladas numa fotografia. “Mas vocês pareciam tão felizes…” É claro que parecíamos, pois estávamos. Naquele momento. Mas momentos se dissolvem, e evaporam. Só quem tem o privilégio de revivê-los sempre que quiser é a memória.

Ninguém tira fotos durante uma discussão ou enquanto chora no banheiro sem saber o que fazer com os planos incríveis que se tornaram falíveis e com as mágoas que vão se entulhando por todos os cantos da casa enquanto o amor, o tesão e a admiração estão ficando empoeirados no quartinho dos fundos.

Uma das coisas mais dolorosas que se enfrenta ao romper uma relação amorosa é ter que romper com os sonhos sonhados juntos, com a rotina que foi construída e principalmente com a ideia do que poderia ter sido, mas não foi.

Eu descobri que muito mais difícil do que me desapegar da nossa vida, era conseguir me desapegar daquilo que ela poderia ter sido.

Eu não quero dizer com isso que descobrindo ficou mais fácil, tampouco estou dizendo que separação é um processo tranquilo. Nãããão! É um troço medonho. Acaba com as nossas energias. E com nossas economias. Faz a vida da gente virar do avesso. Mas é aí que tá: o avesso pode se revelar surpreendentemente interessante.

Ninguém entra numa relação porque não tem nada melhor pra fazer (ou não deveria entrar). O investimento é alto, em todos os sentidos, e o prejuízo é bem maior do que o de alguém que aposta uma grana alta no cavalo errado. E é por isso que muitos relacionamentos duram bem mais do que deveriam e vão se estendendo até que se encontre um jeito de amenizar os traumas e os desgastes que virão com o rompimento.

Talvez você não esteja preparado para ler isso, então, me perdoe de antemão se eu estiver matando o seu Papai Noel. A golpes de facada. Na sua frente. Mas sabe aqueles casais de velhinhos que você vê juntos e acha muito fofinhos? Então… ELES NÃO ESTÃO FELIZES (afinal, quem é que tá? Já é tempo de parar de superestimar a felicidade, inclusive a conjugal).

Eles podem ter envelhecido juntos por escolha, porque se amam? Podem, claro. Mas pode ser também que eles simplesmente não tenham encontrado um jeito de separar suas vidas e pela força das circunstâncias tenham continuado juntos. Podem ter se acomodado apesar do amor ter acabado. Um dos dois pode ter continuado porque teve medo de partir, ou porque sentiu culpa, compaixão. Ou porque era conveniente. Talvez eles tenham esperado os filhos crescerem, mas aí as crianças viraram adultos, os anos se passaram e eles perderam o timing. As possibilidades são infinitas. Não se iluda achando que uniões duradouras são sinônimos de uniões bem sucedidas.

Separações também não significam que a relação tenha sido um fracasso. Deu certo até parar de dar.

Esse ano teve Jolie deixando Brad, Fátima ficando sem Bonner. Teve Du Moscovis voltando pra pista. Teve Fernanda Gentil(mente) explicando pra gente que se separou do marido porque eles não estavam felizes e mereciam buscar a felicidade em outros lugares. E teve muita, muita gente dizendo que desistiu de acreditar no amor depois de ver que até “casais perfeitos” como esses se separam.

Primeiro engano: não existe casal perfeito, nem casamento. Segundo: separações não deveriam nos levar a perder, mas a recuperar a fé no amor. Casais famosos e anônimos se separam todos os dias justamente porque se atrevem a acreditar que podem voltar a amar e serem amados.

Pessoas permanecem juntas porque apostam no amor tanto quanto pessoas se separam porque não desistem dele. No fundo, tá todo mundo tentando ser feliz, de um jeito ou de outro.

As coisas acabam. E recomeçam. E tá tudo certo. O que não tá certo é se prender àquilo que já se soltou.

E o mundo continua girando.

Roberta Simoni

Preconceito está em um relacionamento sério com Ignorância

Ironia

“Ele é homossexual mas é um cara inteligente”. Li essa frase no Facebook de alguém que não se julga de maneira alguma preconceituoso.

Não foi a primeira vez que li ou ouvi isso por aí. E não consigo enxergar esse comentário por outra perspectiva senão a do preconceito. Pra mim é como dizer, por exemplo, que alguém “é pobre, mas é limpinho”, como se o fato de ser pobre anulasse a possibilidade dessa mesma pessoa possuir a qualidade de limpa, porque é contraditória à sua característica destacada, no caso, a pobreza.

Ser pobre ou homossexual não é defeito, tampouco escolha. Imagine alguém dizendo “ah, meu sonho é ser pobre” ou “a partir de agora quero ser gay porque acho cool”. Além disso, apontar essas características (ou condições) seguidas de qualidades torna tudo ainda mais sofrível. Na verdade, o que está sendo dito é: “ele é gay, mas para compensar essa enorme falha, ao menos é inteligente.”

Quando alguém diz que fulano é gay, mas é inteligente parece que a qualidade não está presente no adjetivo. Ele é gay, portanto está implícito que não é inteligente. Como se a inteligência fosse uma característica exclusiva de heterossexuais e aquele cara ali – que se relaciona com pessoas do mesmo sexo e apesar disso é não é burro – é apenas uma exceção à regra.

O mesmo exemplo se aplica para qualquer outra qualidade que vem depois da conjunção adversativa MAS, que indica clara oposição entre ideias.

“Ele é gay, mas tem um coração enorme”, “ela é lésbica, mas é gente boa”. Os exemplos são inesgotáveis, tais como os absurdos que as pessoas verbalizam, muitas vezes sem se darem conta do preconceito embutido nessas afirmações.

É como se o fato de homossexuais possuírem qualidades fosse um grande consolo para esse tremendo deslize, não de caráter, mas de orientação sexual.

O mais lamentável é alguém achar que está elogiando ou enaltecendo a qualidade do outro desse jeito sem perceber que o preconceito está presente ali, inerente ao adjetivo.

Ninguém se refere aos heterossexuais dessa maneira, mesmo porque se um homem faz sexo com uma mulher e vice-versa, são consideradas pessoas normais. É senso comum. Mas se homens transam com homens e mulheres transam com mulheres… bom, aí tem alguma coisa muito errada, a começar pela anatomia humana, que não foi projetada para esses fins, isso sem entrar no mérito religioso, que julga relacionamentos homossexuais como algo que vai absolutamente contra as leis divinas.

Leis? Meu corpo, minhas regras. Seu corpo, suas regras.

Divinas? Todas as manifestações de amor são.

Refira-se a um homossexual como você se refere a um hetero. Apenas diga o que ele é, sem precisar destacar sua sexualidade como sua caraterística proeminente, sobretudo esqueça o que ele faz ou deixa de fazer entre quatro paredes, isso não te diz respeito, muito menos influencia na personalidade nem nas ações dele enquanto indivíduo. Ou então arrume um defeito de verdade para identificá-lo. Homossexualidade não é desvio de caráter, não é problema, não é doença e passa muito, muito longe de ser um defeito.

Mais do que superar seus preconceitos, você precisa se livrar da sua ignorância.

Roberta Simoni