Um pouco mais de Kundera…

Milan Kundera(…) No começo do Gênese, está escrito que Deus criou o homem para que ele reine sobre os pássaros, os peixes e os animais. É claro, o Gênese foi escrito por um homem e não por um cavalo. Nada nos garante que Deus quisesse realmente que o homem reinasse sobre as outras criaturas. É mais provável que o homem tenha inventado Deus para santificar o poder que usurpou sobre a vaca e o cavalo. O direito de matar um veado ou uma vaca é a única coisa sobre a qual a humanidade inteira manifesta acordo fraterno, mesmo durante as guerras mais sangrentas.

Esse direito nos parece natural porque nós é que estamos no topo da hierarquia. Mas bastaria que um terceiro se intrometesse no jogo, por exemplo, um visitante vindo de um outro planeta a quem Deus tivesse dito: “Tu reinarás sobre as criaturas de todas as outras estrelas”, para que toda a evidência do Gênese fosse posta em dúvida. O homem atrelado a uma carroça por um marciano, eventualmente grelhado no espeto por um habitante da Via Láctea, talvez se lembrasse da costeleta de vitela que tinha o hábito de cortar em seu prato e pediria (tarde demais) desculpas à vaca.”

(trecho do livro A Insustentável Leveza do Ser – Milan Kundera)

Pois é, pois é… não é à toa que eu “pago um pau” pro Kundera!  E isso é só uma pequena mostra do que é esta arte, que eu gosto de chamar de “Kunderar”, que quanto mais eu conheço, mais eu gosto… e quero mais!

Terminei de ler A Insustentável Leveza do Ser hoje, com muito pesar, já sentindo saudades da companhia do livro, da trama, dos personagens… afe! Eu queria tanto aprender a me apegar menos a tudo: pessoas, bichos, lugares, cheiros, gostos, passados, palavras, lembranças…

Mas como esperar desapego de uma criatura que se afeiçoa até com personagens fictícios…?

Roberta Simoni

Pobre Deus…

“Seja o que Deus quiser. Foi da vontade de Deus. Deus vai mostrar o caminho. Deus sabe o que faz. Deus achou melhor assim. Só Deus sabe. Entrega nas mãos de Deus. Peça a Deus. Deus é fiel.”

Religião

Deus é fiel a quem, afinal? A mim? A você? Não deveria ser o contrário? Não caberia a nós essa fidelidade?

Eu sei que a maioria dessas frases saem naturalmente, a minha boca também não se safa delas sempre. É normal, virou costume. O problema não está em falar, está em acreditar que Deus é mesmo responsável por todas as mazelas do mundo.

E o que eu mais vejo é gente folgada se aproveitando da boa vontade de Deus, gente que age de acordo com essas frases prontas. Que entrega tudo nas mãos Dele, e fica de braços cruzados vendo o circo pegar fogo; que acha que não precisa fazer nada, pois Ele cuidará de tudo;  que acredita que as coisas só acontecem porque é da vontade Dele, jamais porque houve interferência nossa.

É bem mais fácil jogar todas as responsabilidades nas costas de Deus, isso livra muita gente de deveres, culpas e dores na coluna. Ora… se fosse assim, não teríamos o livre-arbítrio, seriamos apenas marionetes no palco da vida, dentro do grande teatro Planeta Terra. Da mesma forma que o homem não é o senhor absoluto do seu próprio destino, também não é uma marionete dos deuses…

“Deus, me dê isso, me dê aquilo, faça eu conseguir aquilo outro…”

Isso me lembra uma piada que eu adoro. Sou péssima contando piadas, eu sei, mas escrevendo ninguém percebe, então eu posso me atrever aqui:

Um pobre homem ia à igreja todos os dias e rezava diante da estátua de um grande santo, dizendo: “Querido santo, por favor, por favor, por favor… conceda-me a graça de ganhar na loteria.” Esse lamento se prolongou por meses. Por fim, irritada, a estátua ganha vida, baixa os olhos para o suplicante e diz, com uma repulsa cansada: “Meu filho, por favor, por favor, por favor… compre um bilhete!”

Não condeno a prece, muito pelo contrário, mas não acho que tudo depende de oração e fé. Acredito que colabore, mas que resolva…? E o nosso esforço pessoal, onde entra? Algumas coisas não estão ao nosso alcance e outras estão, só que é mais fácil pensar que está tudo nas mãos de Deus, daí empurramos tudo para Ele e lavamos as nossas mãos, e depois, quando a coisa não se realiza, foi simplesmente porque não foi da vontade Dele, e não o contrário.

Eu tenho dó de quem passa a vida na inércia acreditando piamente no que prega a sua crença, e de quem toma como verdade absoluta um conceito criado por si próprio, mas, acima de tudo, lamento por Deus. Esse ser tão grandioso e divino, do qual batizamos de Deus, que é idealizado como nossa “imagem e semelhança” (O que eu acho pouco provável. Imagino Deus como uma energia, como vida, ou algo extremamente maior e absolutamente diferente de nós), além de ter que ouvir tantos pedidos todo o tempo, ainda precisa filtrar as necessidades reais das lamúrias preguiçosas.

Que tal dar descruzar as mãos em oração e colocá-nas em ação? Aposto que “mãos na massa” agradam mais a Deus do que uma prece fervorosa. Além do mais, tenho certeza que Ele adoraria ter uma folguinha.

Roberta Simoni

Acordo com Deus

Às vezes, antes de dormir, nas minhas viagens mais malucas e distantes, eu me pego pensando: se existe mesmo esse lance de vida após a morte, reencarnação, vidas passadas e tudo mais, será que antes de reencarnarmos, nós fazemos uma espécie de acordo com “Deus”?

E, se há um acordo, todas as partes estão cientes e concordam com todos os termos e condições, obviamente. Logo, se eu fiz um acordo com Deus – ou qualquer outro ser superior, do qual cada um chama e define como bem entende – antes de vir pra cá, eu já sabia por tudo que eu passaria, e eu, provavelmente, tinha algum objetivo, motivo, pretensão e/ou interesse ao fechar esse acordo.

Aí, eu fico imaginando o papo que eu tive com Deus antes de chegar aqui…

“Deus, sabe o que é? Cansei do paraíso. Não acontece nada de interessante por aqui, eu não tenho mais inspiração para escrever, além do mais, preciso ter do que reclamar, questionar e duvidar. Você me conhece…

Estive pensando em não nascer num berço de ouro desta vez, e ter que suar muito para conseguir tudo que eu quiser. Em compensação quero nascer numa família boa e iluminada, se for possível, é claro. Quero me apaixonar muitas vezes, amar algumas outras, e viver tudo intensamente, como se fosse a primeira e a última vez sempre.

Quero experimentar todos os prazeres e as aflições humanas. Quero me aprofundar na vida, quero buscar respostas para tudo, até porque eu não me lembrarei de nada mesmo, e sei que terei que reaprender todas as coisas. E apesar de eu achar isso tudo uma covardia e de ficar cansada só de pensar em começar tudo de novo, eu concordo que haja fundamento nesse Seu método, e confiarei no sexto sentido que eu terei, porque espero poder levar comigo alguma experiência das outras vidas, mesmo que inconsciente. Você se importa?

Também não quero ter uma vida pacata. Quero viajar muito, morar em muitos lugares, me aventurar, me arriscar, ter que fazer muitas escolhas difíceis (onde eu estava com a cabeça???). Não quero ser rica, quero aprender a viver com pouco (hãããã???), porque não quero ter apego a nada material. Não me importo de ter que trabalhar muito, mesmo ganhando pouco (eu não conhecia a moeda Real naquela época!), por isso, quero me profissionalizar em algo que me dê muito prazer e não – necessariamente – muito dinheiro (isso explica o meu diploma de jornalista!).

Permita que eu atraia não só pessoas lúcidas e boas, preciso atrair malucos e pessoas de índole duvidosa também, para conseguir fazer uma análise mais aprofundada da mente humana (que tipo de psicanalista eu pensava que era? A versão feminina de Freud???).

E, por fim, me mande para um país subdesenvolvido e pobre, porém rico de belezas naturais. De clima tropical, aonde o povo seja festeiro e cheio de esperanças, apesar de todos os problemas sociais. Eu preciso aprender a ser otimista com essa gente, e espero poder levar alguma coisa boa a eles também.

Se não for pedir muito, permita que eu cresça perto da praia e que eu tenha contato com o mar constantemente. E se, por ventura, eu começar a reclamar muito da vida, me mande para algum lugar cinza, longe do cheiro da maresia (agora sei o que vim fazer em São Paulo!), para eu me lembrar do quanto eu era feliz e não sabia. Isso servirá para eu dar valor a todas as coisas, e pensar algumas vezes antes de reclamar da vida, outra vez.

Só peço que, enquanto eu estiver por lá, eu seja lembrada constantemente  da efemeridade da vida, para que eu contemple emocionada cada pôr-do-sol, cada flor que nasce no meu jardim, cada folha que cai das árvores, cada abraço sincero, cada sorriso gratuito, cada beijo apaixonado, cada palavra verdadeira, cada gesto humanitário, cada atitude benfeitora, cada suspiro e cada sopro de vida. Ou seja, cada vez que eu Te reconhecer nessa minha jornada.”

Depois, Deus e eu assinamos o contrato (do qual eu desconheço o prazo) e cá estou eu, experimentando, sentindo e saboreando a vida outra vez, enquanto o acordo está vigente.

Roberta Simoni