As vésperas de começar o Rock in Rio eu seria mais uma na multidão. Na multidão que assistiu aos shows no conforto do sofá de casa. Mas um telefonema me fez abandonar o meu sofá e a minha casa durante todos os dias do evento para praticamente viver na Cidade do Rock.
Quando recebi o convite para trabalhar como fotógrafa nesse que seria o maior espetáculo musical dos últimos tempos, a única coisa que minha boca foi capaz de pronunciar foi um sonoro SIM. É claro! Aceitei de pronto, mesmo sem saber muito bem o que eu faria ao chegar lá. O medo do desconhecido e a apreensão do desafio só viriam a pesar mais tarde, quando a ficha começasse a cair.
Já alojada na casa que apelidei de “Toca dos Fotógrafos”, ainda sem conhecer praticamente nenhum daqueles que seriam meus colegas de trabalho nos dias que se seguiriam, quando um deles vinha me perguntar qual seria a minha função na equipe e eu respondia que tinha ficado responsável pelas fotos do backstage, diante da frase que sempre vinha acompanhada da palavra “sortuda”, eu quase me desculpava pelo aparente “privilégio”.
Privilégio esse que eu tinha pouca ou nenhuma noção. Ok, eu teria acesso aos camarins de artistas que as pessoas estavam pagando alguns dinheiros para poderem ver de longe ou de menos longe, no caso dos mais fanáticos, grudados às grades que separavam o público do palco. Nada contra quem curte, mas eu não sou adepta a esse tipo de calor humano. Não desse. Não mesmo. Enfim. O fato é que esse tipo de “vantagem” nunca me envaideceu, dessa vez não seria diferente. Eu vislumbrava mesmo era a oportunidade de enriquecer o meu portfólio fotográfico (e de pagar as contas do mês). O que eu não previa era que esse trabalho me proporcionaria bem mais do que isso.
Só fiquei sabendo que cobriria as ações sociais de iniciativa da organização do evento quando cheguei lá. O trabalho era basicamente fotografar os artistas autografando guitarras que, no fim de cada dia de shows eram rifadas. A grana arrecadada com as rifas seria revertida em doações de novos instrumentos musicais para ONGs. Um projeto muito bacana…
E que parece fácil, né? Mas é difícil e tenso. E exaustivo. Horas e mais horas em pé nas portas dos camarins à espera das assinaturas nos instrumentos para, no fim, alguns músicos simplesmente se negarem a fazer, como no caso do Elton John, a quem eu tive o desprazer de fotografar, tamanha antipatia.
Não foi só um trabalho fotográfico que, por si só, diante da importância do evento, é de uma responsabilidade muito grande, foi um exercício constante de paciência, persistência e resistência física e emocional.
Trabalhei todos os dias com a Tita, produtora responsável por conseguir as assinaturas das guitarras que eu fotografava e que, por sinal, foi a melhor parceira que eu poderia desejar. A empatia foi instantânea e tenho certeza que isso colaborou muito para o sucesso do trabalho. “Lá vem as incansáveis moças das guitarras outra vez…”, era o que escutávamos todos os dias ao chegarmos no backstage. Mas, apesar da fama de incansáveis, nosso cansaço era notório, estava estampado na nossa cara, embora sempre viesse acompanhada de sorrisos cheios de dentes. Afinal, se rindo já era difícil…
A sensação esquisita que me acompanhava durante todo o tempo era a de parecer ser mais uma fã e não parte funcional daquilo tudo. Toda vez que tínhamos que insistir uma, duas, dez vezes para conseguir um maldito autógrafo, eu, com a colaboração da minha imaginação fértil, visualizava a seguinte cena dentro do “Fantástico Mundo de Beta”: “Oi, Seu Elton, sabe o que é? Eu até acho que o senhor canta direitinho, sabe tocar piano legal, coisa e tal, mas olha só, eu nem sou sua fã, sabe? Eu nunca estaria aqui pedindo um autógrafo ou uma foto por vontade própria, isso é só o meu trabalho, entende? Eu podia estar roubando, matando… mas eu to só fotografando.”
Obviamente isso nunca aconteceu, em parte porque o meu inglês é tão facilmente compreendido quanto os discursos do meu afilhado de 7 meses de idade, confesso.
A gente tinha que lidar com o ego inflado – e inflamado quase sempre – de muita gente grande. Grandes não porque fossem pessoas maiores ou melhores, mas porque foram colocadas num pedestal para serem veneradas, merecidamente ou não, de forma totalmente equivocada.
Mas eu também tive surpresas agradáveis no caminho. Grande parte dos artistas abraçou a idéia. Quase todos os cantores e bandas nacionais topavam autografar e posar para a foto sem criarem grandes dificuldades. Isso me permitia sair de trás do palco algumas vezes e ir pro fosso (espaço reservado para os fotógrafos na frente do palco) e brincar de fotógrafa dos shows, e nessa brincadeira, eu aprendi muito, fiz boas fotos enquanto cantava junto e, algumas vezes, me emocionava com o público também. E o melhor: longe da muvuca. É verdade, eu estava onde muita gente gostaria de estar. Mas a emoção não era pelo tal privilégio em si, mas pela noção da oportunidade única, da chance de aprender e por saber que um dia eu me lembraria desses momentos e pensaria: “eu era feliz e sabia!”. Estar feliz é ótimo, mas melhor ainda é ter consciência da felicidade.
No mais, as situações cômicas não foram poucas. E as gafes que eu cometi, é claro, renderiam uma crônica exclusiva. Muita gente me mataria se soubesse que eu estava dentro do camarim do Maroon 5 e que, apesar de gostar do som que os moços fazem, não fazia ideia de como eram as suas carinhas e por isso mesmo custei a me dar conta que era o próprio Adam Levine quem estava ali, ensaiando, sentado à minha frente. Sim, Deus não é justo e não dá asas a cobra, é verdade.
Essa situação, inclusive, se repetiu com diversas bandas. Eu sabia que tinha que fotografar, mas não tinha a mínima noção de como eram os rostos que eu fotografaria. Não foi uma nem duas vezes que o Santo Google me salvou.
Tem muito sujeito que daria a vida para estar no meu lugar para ver a Kate Parry trocando de roupa, e muita fã que gostaria de ganhar um beijo (no rosto, calma!) de um dos integrantes do Maná (banda que eu desconhecia até o RiR e sigo desconhecendo…), que eu nunca tinha visto mais magro, de calça mais justa e cabelo mais espetado e que veio do nada, me abraçar, ao passo que eu tentei ser simpática e me comunicar com um portunhol misturado com inglês desastroso. Além de outros micos impublicáveis e que, felizmente, ficaram restritos a quem estava lá.
Isso, é claro, sem falar da tietagem que não fui capaz de evitar em dois momentos: ao encontrar com o Marcelo Bonfá e o Dado Villa-Lobos do Legião Urbana e o mestre das composições, Zeca Baleiro. Tietei mesmo, mas foi discretamente e com dignidade, juro! Não contem lá em casa.
Verdade que muitas bandas só ganharam rosto pra mim depois do RiR e com certeza algumas delas vão entrar para a minha play list. Outras, no entanto, vão continuar lá onde estão, fazendo sucesso na Bahia e entre os micareteiros de plantão…
De bom ficou a ótima impressão que tive da Joss Stone, da Janelle Monae e da Esperanza Spalding, de talento proporcional à doçura e lindeza; a companhia sempre divertida dos rapazes da Orquestra Sinfônica Brasileira no backstage, os shows maravilhosos que consegui assistir do Stivie Wonder e do Metallica com os queridos parceiros de fotografia Christian e Bruno e com nossa mascote assistente metaleira, Rebecca, que foi um achado na equipe; o carinho pela Tita que, com certeza, vai para além daqui. O show do Coldplay que deu gosto de fotografar e assistir de perto e que me rendeu fotos que circularam por algumas mídias digitais.
Além disso, a alegria e o orgulho de ter sido uma das fotógrafas oficiais do Rock in Rio, a gratidão pela indicação do Rodrigo e recomendação do Christian, o voto de confiança do Rogério; a oportunidade de aprender com tanta gente fera como o Terranova e o BDL; a amizade que se estreitou com toda a equipe que dormia pouco e permanecia muito tempo acordada junto, e por fim, a parceira do Bruno que me socorreu com equipamento e suporte técnico na hora do sufoco e do Patrick que me pegou pela mão e me carregou para o posto médico quando, nos últimos instantes, durante o show dos Guns N’Roses meu corpo começou a dar sinais de que iria pifar a qualquer momento, depois de tantos dias sem comer e sem dormir quase nada, como todo o resto da equipe, naquela jornada louca de quase 20 horas de trabalho por dia.
Ainda teve a Thelminha, minha parceira de quarto e cantora oficial do hino do RiR, o Daniel que, “pô, meu”, falava pouco, mas ria muito. E um salve pro Paulo, o mais guerreiro de todos nós, que se machucou enquanto fazia as fotos, foi proibido pelos médicos de continuar trabalhando, mas ficou ralando até o final, firme, forte e com um saco de gelo nas costas.
Dizem que a vida é feita das experiências que vivemos, mas eu acho que ela é feita da maneira como vivemos cada experiência. E o que fazemos com elas depois. As minhas, por exemplo, têm validade estendida para além desse episódio. O Rock in Rio não me deu outra escolha senão vivenciá-lo da maneira que mais gosto: intensamente.
E todas as vezes que a exaustão era maior do que a euforia de estar ali e eu sentia uma vontade enorme de fugir pra casa, eu me pegava rindo, pensando no quanto o roteirista da minha vida é irônico e dotado de senso de humor. Em pensar que há 10 anos, eu fui pega tentando fugir de casa para ir ao Rock in Rio e fiquei lá, inconsolável, assistindo os shows de casa.
Roberta Simoni