Tudo na mais perfeita (des)ordem

Gustav Klimt

Veja bem, todo texto começado com um “veja bem” promete uma narrativa pouco convincente e justificativas infundadas. Vai vendo…

É arriscado afirmar que eu tenha desaprendido a escrever, mas é possível que eu tenha perdido a mão e que os meus textos quando consigam sair do forno, saiam solados. Isso seria uma lástima se não se tratasse de algo tão irrelevante.

Meu cérebro anda confuso com as múltiplas tarefas que adquiri nos últimos meses. Pausa dramática para a principal e mais surpreendente de todas: virei peã (ou peoa – segundo o dicionário, tanto faz) de obra. Aprendi a cimentar, emassar, lixar e pintar paredes. Aprendi também a rejuntar pisos. E, definitivamente, não consegui aprender a montar armários, visto que um deles ficou com o teto na parte de baixo e as estruturas no alto.

Minha vida entrou num ritmo tão alucinante de trabalhos, funções e mudanças de todos os tipos e tamanhos que eu já nem lembro como é acordar numa manhã de sábado e, sem ter o que fazer, passar um dia inteiro no ócio pensando a respeito de absolutamente nada. Por outro lado, não sei o que é ficar entediada há milênios. Bem na verdade tédio nunca foi um sentimento comum pra mim e, embora eu tenha certa familiaridade com o caos, ando sonhando em acordar num fim de semana e ter como única preocupação colocar a canga na bolsa e passar a tarde inteira torrando no sol e comendo biscoito Globo na praia de Copacabana.

Naturalmente não foi por acaso que escolhi uma pintura do Gustav Klimt – cuja obra sou apaixonada – para ilustrar o texto de hoje. Embora a expressão da menina seja serena e a imagem toda florida, com tons sóbrios, acho a disposição dos elementos por toda a imagem um tanto caótica, o que, na minha opinião, a torna ainda mais bonita. Ou, vai ver, isso sou só eu enxergando caos onde há absoluta ordem.

Enfim, o que sei é que por aqui muita coisa anda indiscutivelmente fora do lugar. Meus livros ainda estariam misturados com minhas panelas, bem como meus sapatos entulhados com os utensílios domésticos caso meus pais não tivessem feito um “mutirão de dois” vindo para cá para nos ajudarem com a arrumação da casa nova.

O meu humor, contudo, continua perdido no fundo do cesto de roupas sujas e a minha cabeça anda em algum lugar cujo mapa não está à venda em nenhuma banca de jornal porque ninguém nunca ousou fazer. O que me consola, no entanto, é ver que não estou sozinha. O mundo inteiro parece estar em desordem.

Tudo parece tão fora de contexto que os meus objetos fora do lugar até combinam com o cenário social. Não sei vocês, mas eu ando tão carente de educação e gentileza que ontem, quando a caixa do supermercado me atendeu com boa vontade e simpatia, senti vontade de lhe dar um abraço e gostaria de ter lhe oferecido flores. Já na farmácia, depois de horas na fila (que na verdade foram longos minutos que pareceram horas), quando fui atendida por um rapaz que não se moveu sequer para verificar a disponibilidade dos remédios que eu procurava, olhei para ele com os olhos caídos e perguntei: “Ei, moço, por que você tá fazendo isso comigo? É pessoal?”

Óbvio que não era pessoal, e é claro que eu sei disso, mas, quando tudo o que se espera do seu interlocutor é um pouco de educação no trato, não lhe ocorre que ele possa estar com um furúnculo nas nádegas, ou que ele tenha uma mulher encostada em casa, ou ainda, que o seu chefe seja uma mula e que muito provavelmente ganhe um salário dez vezes maior que o dele , ou que simplesmente ele esteja tendo um dia ruim porque acordou de mau humor.

Afora minha total inaptidão de compreender as causas por detrás dos atos grosseiros e a minha dificuldade permanente e indissolúvel de conviver em sociedade, eu continuo exercitando minha admirável capacidade de me surpreender com o mundo e com as pessoas, e a linha que separa o que me atrai e o que me repele nelas continua sendo tênue.

Mas não vivo só de amar e desamar os outros. De fazer obras, mudanças e malabarismos. De continuar me afligindo com o excesso de funções e a escassez de retorno$. De negligenciar as minhas relações de afeto mais preciosas por falta de tempo. De me angustiar pelos deveres e não deveres, pelos quereres e não quereres dos mais rasos aos mais profundos, das necessidades mais básicas aos anseios mais complexos. Bom… eu pensei em escrever muitas coisas para contar do que mais eu tenho vivido, mas a verdade é que desde o momento em que eu comecei a escrever até aqui eu já não sei muito bem.

Do pouco que sei e posso contar sobre a minha atual experiência de vida é que eu tenho vivido, o que considero, sinceramente, uma coisa grandiosíssima. Pois aqui, nesta mesma vida, eu já experimentei um bocado de vezes estar viva sem estar vivendo. De modo que percebi que ter uma vida e não sentir que a possuo é pior do que ir morrendo aos pouquinhos por sentir-me perfeitamente viva.

Veja bem… observe, está tudo na mais imperfeita ordem.

Roberta Simoni

Pinto no Lixo (ou Beta no Sebo)

O que é isso? Um pinto no lixo? Nãããão, é só a Beta no Sebo…

É desse jeitinho mesmo que eu estou me sentindo essa semana: um pinto no lixo! Não bastava estar contente por ter conseguido mudar de cidade (sim, outra vez!) e estar morando num cantinho muito agradável, ainda que temporário (como não poderia deixar de ser…), depois de passar quase 6 meses vivendo num lugar que eu aboninava, tamanha foi a minha felicidade ao descobrir que bem ao lado da minha nova toca tem um lugar mágico, também conhecido como Sebo!

Mas não é um sebo qualquer, é um lugar adorável, desses que você entra e não quer nunca mais sair. Eu moraria entre aqueles livros se não me cobrassem aluguel.

Mas, por hoje, o sebo já fechou e, a essa altura, algumas várias malas me aguardam, com algumas várias roupas dentro, que esperam ansiosas por viver dentro de um armário com algumas várias gavetas, depois de tanto tempo brigando por espaço dentro daquelas algumas várias malas. Pois é, eu ainda não tive coragem de avisá-las que o armário é temporário, deixo que curtam sem se preocuparem tanto com o amanhã. Eu e elas, todas feito pintinhos no lixo!

Para a euforia ficar completa, o que eu vejo da minha nova Janela de Cima ao acordar? O Corcovado, com um moço bonito, de braços abertos pra mim.

Impossível não me sentir abraçada por livros, armários e Cristos.

Roberta Simoni

Mutável

Borboleta Azul

Quem nunca mudou não vai me entender. Já aviso antes de começar a “me” ler: quem não se considera mutável não será capaz de me compreender.

O tempo todo me deparo com as minhas mudanças. Esbarro nelas, tropeço sem querer. Encontro-as sempre nas esquinas da minha vida. E não são só as mudanças de casas, de cidades, de amores ou de empregos, mas as mudanças de atitudes, de gostos, preferências e personalidade. O que é essencial não se transforma, de resto tudo é transitório.

Eu já fui do samba para o rock até chegar ao blues. Isso para não citar os outros trocentos estilos musicais que embalaram a minha vida até onde consigo me lembrar. E ainda tem os discos de vinil do Balão Mágico e da Xuxa, que me entregam. Sim, eu fui uma “baixinha da Xuxa“. Não tenho culpa se nasci na época errada, ok?!

E o paladar? Esse mudou consideravelmente nos últimos anos, mas ainda tem muito que evoluir. Está sempre disposto a aprender a saborear tudo que é coberto – ou recheado – de calorias. O olfato se aprimorou bastante, feliz ou infelizmente, dependendo de cada momento – e cheiro. A visão se tornou profissão (fotografia). A audição ficou aguçada, sensível, fresca e seletiva. A voz cada vez mais desafinada na opinião dos meus ouvidos! O tato… ah, esse ganhou forma, gosto, cheiro e arrepio, tudo ao mesmo tempo, uma delícia!  Já a memória segue em processo de decadência, coitada! Enquanto a intuição só melhora a cada dia, já é quase uma “Mãe Dinah” a danadinha!

Meu cabelo apesar de ter mudado pouco, mudou. De grande para pequeno. De curto para longo. Por enquanto, basicamente isso. A cor já anda querendo mudar de castanho para branco, e a cada dia muda mais. O que meu cabelo não sabe ainda é que existe uma coisa chamada tinta. E eu não devo demorar nada para apresentá-los. Há quem diga que o meu cheiro é o mesmo, mas eu mudo sempre de perfume!

Minha rotina mudou, meus costumes e meus gostos. Minhas atitudes mudaram na marra, mas apenas algumas, outras se conservaram no erro.

Mudaram os meus planos, moldaram os meus sonhos, maquiaram o meu rosto, despentearam o meu cabelo, colocaram rugas ao redor dos meus olhos e olheiras embaixo deles, enroscaram pneus em torno da minha cintura, me fizeram usar absorventes, aparelho nos dentes, vestiram meus pés com salto alto e meu corpo com adoráveis trapos.

Olhando fotos antigas e me vendo cada hora de um jeito, de um tamanho (de altura ou largura) e com uma expressão diferente, descobri que sou mutante. Afinal, todos somos. Só não sabemos, ou sabemos, mas, às vezes, não aceitamos, ou simplesmente esquecemos. Menos os versáteis, esses se orgulham de ser mutantes.

Mutação não é coisa só de novela horrível da Record, ou de cinema. Tudo é mutável, eu sou, você é, as espécies, a natureza, o clima, os sentidos. Tudo é cíclico.

janela borboletaNa praia onde eu cresci tinha uma duna enorme, uma não… várias, que hoje não passam de morrinhos.  E o mar onde aprendi a nadar? Agora nem peixe consegue mais respirar lá. Na rua que eu brinquei descalça não tem mais criança brincando. Essas mudanças ferem a alma da gente profundamente, porque acompanham o processo de degradação mundial. E isto é apenas o que enxergamos sem a ajuda de lentes de aumento.

Mas nem tudo está perdido. A gente ainda pode mudar de ideia, de opinião, de partido ou religião. Pode trocar de lente, de roupa, de estilo. Pode mudar de casa, de bairro, de cidade ou país. Pode mudar de estado de espírito também, de companhia, de solidão. Pode trocar de amor, de caminho, de destino. A gente pode “brincar de Deus”, de morrer e nascer diferente todo dia e reinventar nossa própria vida.

Mas deixa isso pra lá, só me entende quem já foi lagarto. Ou quem ainda é, tentando virar borboleta a cada dia…

Roberta Simoni

Eu, minha mala e “ela”.

Perder-se

É quando eu penso que ela não virá tão cedo que ela chega sorrateira, de mansinho, no meio da madrugada, prendendo a respiração, andando na ponta dos pés, com os passos lentos como os de um astronauta em solo lunar.

Tanto esforço em vão. Eu já estou acordada. Sou amiga da madrugada, temos um caso e somos fiéis amantes. É com ela que eu penso na morte da bezerra – e na minha própria – contamos carneirinhos, vaquinhas e a fauna inteira, esperando o sono chegar, mas quem chega é ela. E chega sem avisar.

Patética de tão dissimulada com seus passos de astronauta tentando não me acordar. Eu acho até graça, mas não sorrio pra ela. E ela sabe o porquê. Paro de pensar na bezerra, na morte dela, na minha, nas vacas, nos carneiros, e penso agora no astronauta que nunca foi à Lua e até hoje se faz acreditar ter passado por lá. Ai ai… como somos tolos. Acreditamos no que queremos acreditar…

Ela também tem o direito de acreditar que pode entrar aqui sem que eu consiga notar. Deixa… deixa ela achar que não está fazendo barulho nenhum com seus passos desastrados e pesados, com sua respiração profunda e cansada. Me deixa também… deixa eu fingir que não a vi chegar. Ela vai fingir que acredita por alguns dias, até tomar coragem de me enfrentar. Ganho algum tempo inerte até lá.

Lá no fundo, eu sei… uma pequena fração de mim gosta de vê-la chegar e sente até saudade quando ela demora para voltar, enquanto todas as minhas outras milhares de particulas começam a se repelir só de ouvir falar o nome dela outra vez: MUDANÇA!

Passo dias e dias sem lhe dirigir a palavra. Ela, educada, me corteja, abre caminho para que eu possa passar, me leva até à porta de casa quando vou sair, e quando volto, ela está lá, me esperando com um sorriso irritantemente largo. Me lança um olhar desafiador e começa a apelar: ocupa o meu lugar preferido no sofá, se coloca à frente da tevê, deita na minha cama, me empurra durante a noite. Por fim, começa a me incomodar.

E eu sei que ela só vai embora quando eu mudar. Então eu me mudo… mudo de casa, de bairro, de cidade, de país, de planeta. Ela vem comigo, fiel. E garante que só vai embora depois que eu também mudar.

Eu, cansada, carregando uma mala pesada numa das mãos. Sem rumo, sem estrada e sem calçados nos pés, caminho descalça na chuva outra vez. Na outra mão, a mão dela, entrelaçada à minha. Seguimos de mãos dadas, esperando o tempo mudar, e esperamos que eu mude junto com o tempo. Para melhor. Sempre.

Roberta Simoni