Eu não falo nada pra ninguém que é pra não apanhar. Fico vendo e ouvindo todo mundo ao meu redor se queixar quando falta luz em casa, na rua, no bairro, na cidade inteira. Eu aproveito para olhar as estrelas.
Como devia ser viver sem eletricidade? Sem ventilador, ar-condicionado, chuveiro elétrico, geladeira. Difícil até de imaginar, mas-porém-contudo-entretanto-todavia, vivia-se. Do mesmo jeito que eu vivia, há 10 anos, sem internet e sobrevivia antes de ser devota do “Santo Google”.
Pouco mais de uma hora. Foi o tempo que durou o apagão aqui no bairro. O suficiente para deixar as pessoas aflitas, inconformadas com o calor e, principalmente com o tédio. Sem tevê e internet. Quase desesperador, eu sei. A luz distrai e o escuro torna tudo insuportavelmente claro e pertubardor. É por isso que todo mundo prefere a claridade gerada pela eletricidade. Só que no claro as estrelas ficam desligadas da tomada.
Não foi o caso de hoje porque eu estava no meio de uma leitura super prazerosa quando a luz apagou, foi quase como romper abruptamente um ato sexual no meio do clímax, mas a verdade é que eu gosto quando a luz acaba. Me sinto estranhamente à vontade e confortável com o breu. Só não falo nada na hora porque sou complacente à aflição alheia.
Imediatamente me lembrei da Hilda Hilst, musa inspiradora de um recente post aqui no blog. A diferença entre mim e Hilda é que, naquela ocasião, ela escreveu à luz de velas e eu finalmente descobri a utilidade da lanterna do meu celular.
Aproveitei a varanda enorme do apartamento, me estiquei na rede, respirei cheiro de noite, procurei o Cruzeiro do Sul e as Três Marias no céu, só achei o trio de Marias, li mais umas três dezenas de páginas do livro e após retomado o estágio de clímax literário me rendi à minha nostalgia preferida.
Voltei à casa pequena que mais parecia de boneca e, apesar das constantes reclamações que eu escutava do meus pais sobre a casa, proporcionalmente ao tamanho de boneca que eu tinha na época, aquele lugar me parecia perfeitamente compatível. Lá foi onde acumulei a maior parte da minha coleção de noites felizes, sempre acabava a luz e ninguém conseguia dormir e, excepcionalmente nessas madrugadas, me deixavam ficar acordada lendo, escrevendo, desenhando à luz de velas, sem hora pra dormir. Nada poderia ser mais legal e medieval.
Era um quintal com três casas, todas ocupadas pela mesma família: tios, tios-avós, filhos, netos, primos. A casa de cima era grande e era onde morava a maior parte da família, na casa de baixo morava minha tia com filhos e dois gatos pretos e, na casa dos fundos, nós com nossa cadela geniosa, a saudosa vira-latas que tinha nome de yorkshire, Hanna. Óbvio que essa união, em tempo algum, deu certo. Mas, nas noites de apagão era como se uma magia acontecesse. Meu tio-avô ia lá pra fora para ver se era só na rua de casa, papai ia acender um cigarro e em questão de minutos, estavam todos fora de suas respectivas casas, jogando conversa fora. Lá de dentro eu escutava a gargalhada escandalosa de tia Wilma. Sinal de que estava oficialmente começado uma noite mágica.
Meu Deus, como eu era feliz e sabia! Os adultos falavam alto e riam, as crianças corriam do lado de fora feito poodles que vivem em apartamento e meia hora depois estavam nos colos dos pais, completamente entregues à Morfeu. E eu lá, acordada, à base de encantamento puro, pedindo silenciosa e internamente para que a luz não voltasse tão cedo e que a noite durasse mais tempo.
Eu não falo nada pra ninguém que é pra não apanhar. Fico vendo e ouvindo histórias de infâncias tristes e traumáticas e juro que entendo quem sente medo do escuro, mas a verdade é que eu fui a criança mais feliz do mundo.
Roberta Simoni