Me colocou sentada no banquinho do piano e apertou o play do toca-fitas. Eu tinha o quê? Uns 10, 11 anos…? Por aí. Mas me sentia com 20, 21 quando estava com ela.
Falei orgulhosa para os garotos lá da rua: – não vou brincar com vocês hoje, tenho que estudar francês com tia Bernadete.
“Un, deux, trois, quatre, cinq…”
Passei anos da minha vida dizendo que sabia falar francês quando tudo que eu conseguia balbuciar eram os números 1, 2, 3, 4 e 5, que aprendi durante as noites que deixava de jogar bola e brincar de queimado na rua para ficar na casa de cima com tia Bernadete, escutando a voz da professora na fita cassete mandando ela repetir frases em francês. Lembro bem mais de tia Bernadete rindo do que conseguindo pronunciar qualquer palavra. Toda vez que tentava falar, fazendo um biquinho nada sexy e se sentindo ridícula quando abria a boca, nós duas caíamos na gargalhada.
Talvez ela preferisse a minha companhia porque sabia que uma criança não questionaria a utilidade de aprender a falar francês quando se tem trinta e tantos anos e tanta coisa mais importante para fazer, talvez porque se sentia como uma criança aprendendo a falar ou talvez fosse só porque ela era mesmo imatura. Fato é que me fazia sentir importante toda vez que descia lá em casa para me chamar para ajudá-la com as lições do cursinho.
Nesse período, morávamos no mesmo quintal, minha tia vivia com os pais, meus tios avós. Tia Bernadete era, na verdade, minha prima de segundo grau, mãe das minhas primas de terceiro grau, Raphaela e Cristina. Alguns anos antes, perdemos Cristina, que caiu do telhado tentando resgatar um gato (ou, pelo menos foi o que me contaram e sustentam até hoje: o gato subiu no telhado e…), tínhamos mais ou menos a mesma idade, Cristina e eu, e – dizem – um gênio bem parecido, éramos os moleques de saia da família mas, para o alívio de todos, brincamos poucas vezes juntas e não chegamos a causar grandes danos à humanidade. Morávamos em cidades diferentes e tínhamos pouco contato.
Cristina teve suas córneas transplantadas para outra criança. Hoje existe alguém enxergando esse mundão com os olhos dela e eu torço para que essa pessoa se sinta feliz por isso todos os dias quando acorda. Uma vez tia Bernadete me disse que sonhou que ela e Cristina estavam usando vestidos brancos, sentadas num jardim bonito, comendo o bolo de chocolate que vovó Verinha fazia (e faz divinamente até hoje). Pouco tempo depois, tia Bernadete morreu. Desde então, toda vez que penso nas duas, é desse jeito, contentes, com mãos, bocas e vestidos lambuzados de chocolate. Não poderia ter confeccionado uma imagem mais genuína e divertida delas.
A sala onde tia Bernadete e eu “estudávamos” era um dos meus lugares favoritos no mundo todo, no meu mundo todo de menina que conhecia quase nada além do bairro da Vila Nova. Era uma sala cheia de quadros, com uma mesa de jantar grande, uma cristaleira, um piano que, de vez em quando, tia Wilma me deixava tocar e a família toda aplaudia, me fazendo acreditar que eu estava, de fato, emitindo qualquer som parecido com música.
Aconteceram muitas festas naquela sala, hoje só há poeira e silêncio. E a saudade da menina que sentava no banco giratório do piano, colocava as pernas pro alto e pedia para tia Bernadete fazê-la girar, girar, girar…
Sonhava com ela no princípio, depois os sonhos pararam de acontecer. Da última vez que estivemos juntas – há mais de 16 anos – tia Bernadete já estava muito debilitada e, enquanto os adultos discutiam as medidas que tomariam com o avanço da doença, nós duas assistíamos televisão na cama dela quando, durante uma apresentação da Claudia Ohana num desses programas de auditório, eu gritei: “olha tia, ela tem um monte de cabelo no suvaco!”. Tiveram que me retirar do quarto porque tia Bernadete começou a ter uma crise de riso. E foi essa gargalhada que ela me deixou como última recordação.
Uma vez eu li em algum lugar que uma pessoa só morre de verdade quando ninguém mais lembra dela. Se isso for verdade, eu a forço a viver e não sei até onde isso está certo.
Mas essa não é a história de uma mulher que morreu, é a história da mulher que viveu. Morrer não difere ninguém.
Vovó conta que tia Bernadete era ousada, destemida, inconsequente, intensa, fez muitas escolhas erradas e, até onde eu sei, nunca foi bom exemplo (e não é depois de morta que vai virar). Vai ver foi isso que aproximou a gente…
É claro que ela nunca aprendeu a falar francês. Nem eu. Mas quem se importa? Morrer se divertindo é melhor do que morrer bilingue.
Roberta Simoni