Horinhas de Descuido

“Felicidade se acha é em horinhas de descuido.” (Guimarães Rosa)

À Helena, Roberto e Alexandre.

Há quem diga que meus textos são densos. Como poderia ser diferente se eu sou densa? Pungente, intensa, dolorida. Não se deixem enganar pelo meu sorriso cheio de dentes. Também sei ser sorridente, engraçada, doce e gentil. Mas a vida me dói sempre, menos nos momentos de distração… menos naquelas horinhas de descuido quando a felicidade acontece.

Ontem eu ganhei um sorriso gratuito de um transeunte. E ganhei cafuné de mãe. Ganhei músicas de amigos e, de um deles, ganhei uma música que ele compôs e que, segundo ele, se parece comigo pelas minhas tristeza e doçura profundas. Chorei de emoção. E de alívio por perceber que a minha capacidade de emocionar-me continua intacta.

De outro amigo escutei a frase mais linda do dia: “Amo a impossibilidade de me enganar com você.”

Achei lindo e puro, embora lá no fundo, eu gostaria que ele estivesse equivocado. Gostaria que as pessoas pudessem se enganar comigo de quando em vez ou que, ao menos, se surpreendessem, mas a minha transparência impossibilita qualquer equívoco, pelo menos para aqueles que enxergam bem.

Ganhei um beijo do velho Chiquinho Ramalho. O vô que já não fala, não anda, tampouco distribui beijos. Sentei na varanda ao lado dele, sentado sobre sua cadeira de rodas, e assisti o meu velho segurando um cigarro imaginário (costume pelos muitos anos passados sentados na porta de casa fumando e observando a vizinhança).

Ele segurava o cigarro que não tinha nas mãos, levava até a boca, tragava, assoprava, jogava a guimba no chão e olhava para o horizonte. Com a outra mão, segurava a minha mão com muita, muita força. E eu perguntava: “vô, no que você tá pensando?”, e pedia: “vô, olha pra mim!”. Mas ele não olhava, não falava, não se movia, a não ser para fumar seu cigarro imaginário, e eu pensava no que ele ainda era capaz de sentir e se ele ainda era capaz de sentir alguma coisa. Ao final, como das outras vezes, pedi-lhe um beijo e, diferente das outras vezes, ele me deu. E o beijo calou as minhas dúvidas sobre os sentidos e os sentimentos dele. Foi a minha horinha de descuido do dia.

Pela manhã, recebi essa mensagem da Helena, minha menina acesa: “Justo quando a lagarta achou que o mundo ia acabar, ela virou uma borboleta”.  

“Não vejo a hora de virar borboleta”, respondi. “Quanto mais tempo dentro do casulo, maiores e mais belas as asas da borboleta”, me garantiu a menina acesa. Veremos…

Enquanto isso, faço como o velho Chico com seu cigarro: vivo meus amores imaginários, trago as minhas tragédias íntimas, assopro as minhas dores e escrevo com o que me restou de alma que, eu sei, é mais do que alguns têm de alma inteira.

Roberta Simoni

6 comentários sobre “Horinhas de Descuido

  1. Em um dia que ganhaste muitas coisas, que tal mais uma 🙂

    Ao olhar para ela

    Ao olhar para ela
    Não é possível ver quase nada.
    Nada muito além do que seu sorriso é capaz de revelar
    Algo muito aquém do que sua beleza é capaz de ocultar.

    Ao olhar para ela
    O pouco que vejo é bastante incomum.
    Incomum como melodia & letra na perfeição que as enamora
    Algo que transcende a imaginação, linda por dentro, be(t)la por fora.

    Ao olhar para ela
    Vejo o quão complexo pode ser o simples.
    Previsível como o sol no fim da tarde irá se por
    Imprevisível como a próxima palavra no rascunho do escritor.

    Ao olhar para ela
    Seja em um momento de distração ou não
    Eu a vejo
    Bela, Espelho, Transformação, (des)Apego

    Mad

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  2. Ah, tem uma passagem em “Germinal”, que os dois velhos mineiros e amigos sentam-se um ao lado do outro após jantar a sopa de batatas, eles já não falam do trabalho, das mulheres, dos filhos e netos, do passado ou do futuro… Ele já até sabem o que o outro vai dizer sobre determinado assunto… Alguém que viveu e viveu intensamente só precisa dizer que ama o outro, já disse tudo que precisava, e sabe todos os diálogos, mas só de está ao seu lado, e segurar na sua mão, ele sabia que não precisava falar nada. É uma coisa que só a experiência traz, a sabedoria.

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