Encarando o caos de frente…

Enxergar

“Aceitar o que nos machuca profundamente, o inexorável, o que é, ao mesmo tempo, brutal e natural, não nos torna, necessariamente, mais brutos. Só mais lúcidos. A brutalidade, você e eu aprendemos isso ao longo da vida, pode ou não vir acompanhada de boa dose de realismo.” (Fal Azevedo em “Sonhei que a neve fervia”)

A Fal tem razão quando diz que reconhecer que a vida é mesmo uma causa perdida, não significa, em momento nenhum, que a doçura vai deixar de existir. Eu fiz uma escolha. Escolhi olhar o caos de frente e uma escolha como essa requer muita, muita coragem, porque é sabido que vai doer, vai doer muito. E o gosto é amargo, mas existe alguma coisa doce ali. A coragem de fazer aquilo que todos os envolvidos deveriam ter feito há muito, é agridoce.

Meu apartamento está parecendo um campo de refugiados. No caso, de refugiada. Uma única: eu. Há roupas espalhadas por todos os lados, malas ainda não desfeitas, garrafas de água, coca-cola e vinho vazias. A pia da cozinha transbordando, bem como o cesto de roupas sujas. A geladeira, como de costume, vazia. E eu não quero ir ao supermercado agora, nem amanhã, nem depois. Eu não quero e não vou fazer nada que eu não sinta vontade agora, talvez amanhã ou depois.

Meu apartamento é, quase sempre, o reflexo do meu estado emocional, portanto, estamos oficialmente caóticos. E sem culpa, pois escolhemos encarar o caos de frente. Mas não sem dor.

E todas as vezes que eu assumo, sem vergonha, que estou sentindo dor, as pessoas se assustam. Ora, nada dói em vocês? Ou dói e só eu e mais alguns poucos assumem? Esse ano eu fiz o rappel mais alto da minha vida, no local mais alto do Brasil, senti medo, avisei que estava com medo e perguntei para os outros que estavam no mesmo barco, ou melhor, na mesma corda que eu se eles também não estavam sentindo medo e ninguém se pronunciou, apesar de cara de pânico de alguns ser maior do que a minha. Me parece que é desse mesmo jeito que as pessoas reagem diante da dor.

O conceito equivocado de felicidade tem me incomodado mais do que antes, tem me saltado aos olhos o tempo todo, aliás, tantas coisas me saltam aos olhos que minha vista anda cansada. Aumentar o grau das minhas lentes não foi uma atitude inteligente. Com o passar dos anos, enxergo menos e melhor. Sim, melhor. Vejo coisas que antes não via, quando minha miopia ainda não era tão acentuada. O problema é que não há óculos que corrijam minha nitidez precisa.

Enxergar as coisas como elas são dá uma certa tristeza, porque as coisas, geralmente, são tristes. No fundo, e no raso também, enxergar bem é uma punição.

Bem aventurados os amores cegos, as paixões desenfreadas, a esperança descabida, a fé imaculada, a ignorância abençoada e a sinceridade podada.

Hoje é o último dia de 2012, e eu acordei lembrando do sonho que tive pouco antes de despertar: um escorpião me picava. Busquei o significado no Google e parece que sonhar com escorpiões, especialmente quando se está sendo picada por eles, é sinal de bom agouro. Tão melhor…

O calor está insuportável e eu não quero ir a lugar algum, mas preciso. Hoje é noite de Reveillon e eu vou trabalhar fotografando as pessoas sendo – ou tentando ser – felizes. Hoje é noite de Reveillon e eu não vou ter ninguém para abraçar na hora da virada, vou me esconder atrás do visor da minha máquina e meu dedo vai apertar aquele botão que disparará fotos frenéticamente e ninguém vai perceber que o meu coração estará disparando no mesmo ritmo.

E, contraditoriamente a tudo que eu disse antes, eu vou arrumar meu apartamento antes de sair, porque é muito bom ter para onde voltar e eu espero que o meu retorno para casa seja menos caótico – e que os escorpiões, de fato, me tragam sorte em 2013. Mas, não… não adianta, eu não vou mais ao supermercado esse ano. Ano que vem talvez. No ano que vem amanhã tudo pode acontecer.

Roberta Simoni

Diferente, mas igual.

Iguais

Fui abordada por uma moradora de rua que já vi algumas vezes ali pela Glória. Uma mulher negra, alta, que deve beirar seus trinta e poucos anos e que tá sempre falando alto e mexendo com todo mundo que passa por ela na rua. Hoje foi a minha vez:

“Olha, você me parece uma moça bem informada e inteligente, por isso, vou direto ao ponto: sou moradora de rua, mendiga mesmo, e tô com fome, não tenho nada para te oferecer, mas se você tiver algum trocado aí pra me dar...”

Não costumo dar dinheiro a pedintes, quando posso – e quando eles aceitam – pago um lanche na lanchonete mais próxima, mas estava com pressa e tinha uns trocados no bolso. Enquanto contava as moedas para dividir com ela e com a passagem que usaria para pegar o metrô, observei que ela usava uns pedaços de pano que fez de mini-saia e top para se cobrir e brinquei: “gostei do visual”. Ela foi logo se desculpando pela forma como estava vestida. “Não, não… você não tá entendendo, eu realmente gostei da sua roupa, especialmente com o calor que tá fazendo hoje, é de se invejar!” Ela riu e ficou me olhando contar as moedas misturadas com algumas notas de R$ 2,00 amassadas. Expliquei: “sou jornalista”.

Quanto terminei a contagem daquela pequena fortuna que (supostamente) pagaria o almoço dela e a minha passagem de volta para casa, perguntei seu nome. Ela ficou me olhando por um longo tempo e, por fim, disse: “você é diferente”.

“Eu sei, me sinto assim o tempo todo.”

“É, eu também.”

Ficamos nos encarando por segundos quase longos, como dois E.T.s que se reconhecem na multidão, até ela se virar, ir embora e, dois passos a seguir, parar novamente, olhar para trás e, com as moedas numa mão e a outra apoiada na cintura, me encarar mais uma vez, com uma expressão irônica, e dizer: “Afff… sabia que você me fez ficar pensativa?”

“É, você também.”

Sempre penso no que pode ter acontecido na vida de uma pessoa que acabou indo morar nas ruas. E sempre, sempre penso que a vida, no fim das contas, é uma tacada de sorte ou azar. Dependendo de onde se nasce e sendo filho de quem se é, qualquer um pode parar no mesmo lugar que ela. Qualquer um mesmo, com talentos, aptidões, personalidades e sonhos semelhantes, mas chances diferentes. É o que alguns chamam de destino.

E ela ainda começou a conversa dizendo que não tinha nada a me oferecer…

Roberta Simoni

Paredes falantes

Paredes Falantes

Ele quis pintar a parede do quarto dela de camurça. Ela não deixou. Era a mesma cor que ele havia escolhido para pintar a sala da casa dele. Se fosse para mudar alguma coisa, que o colorido fosse diferente. “Além do mais, camurça não é nem nome de cor, é nome de tecido. E tecido cafona.” Ele nunca entendeu a lógica dela, ou a falta total de lógica, mas não precisava entender, o beijo dela costumava calar as dúvidas dele.

As paredes da casa dela contavam histórias de aventuras, viagens, amores e desamores e ele não entendia como cabiam tantas coisas num espaço tão curto – de apartamento e de vida. E se uma parte dele admirava aquela intensidade insana de dez mulheres numa só, a outra gritava de horror por não ter começado a escrever aquelas páginas todas com ela há mais tempo e por ainda não estar nas fotos das paredes da casa dela.

As paredes contam muito sobre as pessoas, especialmente aquelas que não dizem absolutamente nada. Paredes brancas. Nuas. Silenciosas. Paredes que não dialogam, que não interagem, que calam por preguiça, por falta de criatividade, de tempo ou de medo de passarem a vida pendurando prateleiras com enfeites, servindo de encosto para livros, gravuras, quadros e pistas importantes de traços das personalidades dos seus habitantes.

Há paredes que falam, falam e não dizem nada, que ocupam espaços sem preencher, só para disfarçar um buraco aqui, uma rachadura acolá. Paredes infiéis e dissimuladas, completamente descompromissadas com a verdade.

Ela gostava mais das paredes que sussurravam qualquer mistério. Não precisavam ser finas, não. Melhor até que fossem espessas, porque o que os vizinhos falam, escutam e assistem costuma ser bem mais tedioso e irritante do que propriamente interessante. Paredes que sussurram são aquelas que querem contar histórias, segredos… que deixam manchas, digitais, marcas de quadros e móveis à mostra. Sinais que, para ela, eram fios condutores para sua imaginação.

Quem vive aqui? Quem teria vivido? O que teriam vivido? Se essas paredes pudessem falar, o que elas me diriam?

Para ele, paredes coloridas causavam sensações diversas. Talvez por isso ele quisesse pintar a parede da casa dela da mesma cor que pintou a parede da casa dele. Pode ser que ele só quisesse que a casa dela fosse uma extensão da casa dele, ou talvez achasse que faltava colorido na casa dela, ou nela, já que a decoração da casa dela era preta e branca, o que, afinal, dizia muito sobre ela.

Ela não conseguia ficar por muito tempo em ambientes inóspitos, com paredes que tentavam a todo custo convencê-la da credibilidade de quem as decorou, por isso, todo tempo de espera, por menor que fosse, em laboratórios, consultórios e escritórios, tornava-se uma verdadeira tortura.

Ele não gostava de paredes mal pintadas ou mal cuidadas, nem de geladeiras vazias, o que também dizia muito a respeito dele. E bem na verdade, ele nem gostava tanto assim da cor camurça, mas adorava implicar com ela.

– Nós vamos ter bastante quadros e estantes com muitos livros na nossa casa, não vamos?

– Só se você deixar eu pintar nossa parede de camurça.

– É, acho que nós temos um acordo.

Roberta Simoni

Isto não é uma crônica!

Hein?

Aviso aos navegantes: esse post é, sobretudo, sobre nada. Mas a vontade de escrever foi maior do que a minha habitual falta de foco e a minha recente (e passageira) falta de objetividade. Portanto, em caso de sensação de perda de tempo ao fim desta leitura (caso você queira prosseguir), lembre-se: eu avisei. 

Três espinhas inflamadas no meu queixo, as quais eu batizei de Três Marias: Maria Ordinária, Maria Cretina e Maria Bruaca. Essa última, a Bruaca, é a mais dolorida e é tão feia quanto a Cretina e a Ordinária, mas é pior do que todas juntas, não só pelo fato de ser a mais dolorida, mas por ser a única que me incomoda quando sorrio.

Sorrir não tá difícil hoje só por causa da Maria Bruaca, mas porque eu acordei acompanhada de uma melancolia sorrateira, que me abraçou de conchinha pela manhã logo que abri os olhos, assustada com o telefonema que algum infeliz fez para o meu celular às 8h da madrugada num dia em que eu podia ficar na cama até mais tarde. Alguém que, do outro lado da linha, provavelmente discava o meu número por engano e que, ao ouvir minha voz, desligou o telefone, me deixando acordada com essa melancolia sem lógica. Se ainda fosse mau humor faria algum sentido.

Cada vez mais tenho a certeza de que eu vivo numa realidade paralela quando estou dormindo e que essa vivencia influencia na vida que eu levo acordada. E a vida que eu levo acordada tem sido a mais linda das vidas que eu vivi nos últimos dias. – Sim, porque eu vivo uma vida diferente a cada dia, ou várias. – Linda, sim. Cheia de sonhos, esperanças e até aquele sentimento do qual eu sempre andei tão desprovida: fé.

É que eu aprendi a falar baixinho quando eu sinto qualquer coisa parecida com felicidade.

O céu da minha boca tá arranhado, a minha língua tá queimada, engordei três quilos em duas semanas, ainda não sei como vou pagar meu aluguel no mês que vem, carrego três espinhas inflamadas no meu rosto e, mesmo assim, pasmem!, estou bem. Mesmo quando acordo e sou surpreendida com uma melancolia deitada ao meu lado na cama.

Essa semana eu quebrei um porta-retrato, um copo, um termômetro e um cinzeiro. Sorte minha não ser de vidro, embora eu também seja altamente quebrável. Eu sou uma mistura ensandecida de sentimentos e sensações. E quem não é? A diferença é que eu presto muita atenção em tudo o que sinto, talvez por isso eu escreva, já que eu abandonei a terapia porque a minha terapeuta parecia ser mais frágil do que eu e todos os objetos que andei quebrando juntos.

Eu venho sentindo a passagem dos dias nos últimos tempos (ou do tempo nos últimos dias) com uma intensidade quase brutal. Ansiedade: efeito colateral de todo Dezembro, só que esse Dezembro em especial, por ter tanta coisa em jogo. E não, eu não tô falando do fim do mundo, apesar de saber que não seria mau negócio se ele acabasse, mas não agora que eu tô sonhando com Janeiro. Não agora que eu voltei a sonhar…

Roberta Simoni

Lançamento “História Íntima da Leitura” no Rio

Depois do lançamento do nosso livrinho em São Paulo, chegou a vez do Rio de Janeiro!

Montagem Lançamento SP

Para quem ainda não conhece o projeto, eu conto tudo aqui. E lá no site da editora Vagamundo você também encontra todas as informações sobre o livro e o documentário, ainda conhece o perfil de cada autor envolvido no projeto. E é por lá também que as vendas dos livros são feitas (sem custo de frete, vale ressaltar!)

O lançamento aqui no Rio acontecerá no próximo sábado, dia 08 de dezembro, das 13h às 17h no Parque das Ruínas, um lugar lindo, com aquela vista privilegiada para a Cidade Maravilhosa que só Santa Tereza tem.

Espero vocês lá! 😉

Lançamento Rio

Dos transeuntes corações partidos

Desilusão

Eu não sei quantas vezes e em quantos pedaços o meu coração já se partiu. Mas garanto que foram muitas vezes e em muitas partes. O irônico é que ninguém supõe. Quem me vê andando na rua de vestido colorido, com meus fones de ouvido, balançando a cabeça e cantarolando, pensa que eu carrego um coração intacto no peito. Quem diria que, muitas das vezes, ando carregando meu coração no bolso?

Ontem foi um dia difícil, desses em que tudo que se quer é ficar na cama, chorar baixinho no travesseiro ou abrir o berreiro em frente ao espelho para se compadecer da própria imagem sofrível. Ontem não foi a primeira vez que me senti assim, nem a última, suponho. Ontem foi só mais um dia muito, muito difícil de encarar a vida, mesmo assim eu encarei. Levantei da cama, fui até o banheiro, ajeitei meu cabelo diante do espelho, fiz um rabo de cavalo, não tive vontade alguma de me maquiar ou disfarçar as olheiras, só me dei ao trabalho de me esconder atrás dos meus óculos escuros enormes, coloquei meu coração no bolso e saí à rua.

E no momento em que atravessei a portaria do meu prédio, algo inusitado e insólito me aconteceu.

Eu não sei o que teria sido de mim se eu estivesse sem meus óculos escuros para disfarçar a minha cara de espanto ao perceber que, ao passar pelas pessoas na rua, eu podia enxergar seus corações. Eu sei que parece loucura, insanidade total, e não deixa de ser. Mas eu não tenho culpa se, de uma hora pra outra, as pessoas começaram a aparecer com suas almas despidas diante de mim. Olhar para elas daquele jeito foi tão inevitável quanto se estivessem andando nuas na minha frente.

E o que eu vi foram muitos, muitos corações partidos, alguns menos despedaçados do que outros, mas a grande maioria cheia de ranhuras, remendas e rachaduras. Alguns me pareceram secos, murchos. Eram poucos os que tinham uma aparência razoavelmente saudável. Mas todos, no entanto, tinham a mesma característica: ainda pulsavam.

O moço da banca de jornais que se esqueceu como é sorrir, tinha um dos corações mais áridos que eu já vi na vida. O rapaz passeando distraído com seu cachorro me pareceu jovem demais para ter um coração tão remendado. A senhorinha falante na fila do caixa do supermercado tinha o coração tão, tão apertado que parecia uma ervilha. A menina que passou por mim sem me ver, mexendo freneticamente no celular tinha um olhar tão assustado quanto seu coração, que pude escutar pulsando antes de virar a esquina. A moça que me atendeu na cafeteria tinha um coração tão frágil quanto suas pernas, que davam passos trôpegos. O homem de cabelos grisalhos que atravessou a rua do meu lado, secando na camisa as lágrimas que insistiam em cair, tentava a todo custo engolir de volta o coração que estava prestes a sair pela boca.

Passei também por uma minoria de corações que me intrigaram: eles estavam quase intactos, e não coincidentemente pertenciam aqueles que tinham o semblante mais triste que vi ao longo do dia. Mas, com corações tão bonitos, não deveria ser o contrário? Não. Afinal, se o coração está inteiro é porque foi pouco usado. Só corações em desuso estão livres das ranhuras. Se eles não usam, não gastam. E se não gastam é porque não vivem. De duas, uma: ou eles ainda não começaram a viver ou já morreram e ainda não sabem.

O que eu descobri depois de um dia inteiro passando por todos esses corações transeuntes foi que todo mundo já sofreu por amor pelo menos uma vez na vida e quem ainda não sofreu, está prestes a sofrer a qualquer momento (e não, isso não é uma maldição).

A verdade é que a grande maioria das pessoas anda por aí de coração partido. E o mais impressionante é que, mesmo assim, elas andam, falam, dormem, acordam, comem, sorriem, levam o cãozinho para passear, vão ao supermercado, trabalham, falam ao celular, vão ao cinema, ao teatro, andam de metrô, sentam numa mesa de bar e brindam à vida. Essa mesma vida que segue, sem querer saber se a gente tá ou não com o coração em frangalhos.

Porque é aquilo, né? O coração continua batendo…

Roberta Simoni