Diferente, mas igual.

Iguais

Fui abordada por uma moradora de rua que já vi algumas vezes ali pela Glória. Uma mulher negra, alta, que deve beirar seus trinta e poucos anos e que tá sempre falando alto e mexendo com todo mundo que passa por ela na rua. Hoje foi a minha vez:

“Olha, você me parece uma moça bem informada e inteligente, por isso, vou direto ao ponto: sou moradora de rua, mendiga mesmo, e tô com fome, não tenho nada para te oferecer, mas se você tiver algum trocado aí pra me dar...”

Não costumo dar dinheiro a pedintes, quando posso – e quando eles aceitam – pago um lanche na lanchonete mais próxima, mas estava com pressa e tinha uns trocados no bolso. Enquanto contava as moedas para dividir com ela e com a passagem que usaria para pegar o metrô, observei que ela usava uns pedaços de pano que fez de mini-saia e top para se cobrir e brinquei: “gostei do visual”. Ela foi logo se desculpando pela forma como estava vestida. “Não, não… você não tá entendendo, eu realmente gostei da sua roupa, especialmente com o calor que tá fazendo hoje, é de se invejar!” Ela riu e ficou me olhando contar as moedas misturadas com algumas notas de R$ 2,00 amassadas. Expliquei: “sou jornalista”.

Quanto terminei a contagem daquela pequena fortuna que (supostamente) pagaria o almoço dela e a minha passagem de volta para casa, perguntei seu nome. Ela ficou me olhando por um longo tempo e, por fim, disse: “você é diferente”.

“Eu sei, me sinto assim o tempo todo.”

“É, eu também.”

Ficamos nos encarando por segundos quase longos, como dois E.T.s que se reconhecem na multidão, até ela se virar, ir embora e, dois passos a seguir, parar novamente, olhar para trás e, com as moedas numa mão e a outra apoiada na cintura, me encarar mais uma vez, com uma expressão irônica, e dizer: “Afff… sabia que você me fez ficar pensativa?”

“É, você também.”

Sempre penso no que pode ter acontecido na vida de uma pessoa que acabou indo morar nas ruas. E sempre, sempre penso que a vida, no fim das contas, é uma tacada de sorte ou azar. Dependendo de onde se nasce e sendo filho de quem se é, qualquer um pode parar no mesmo lugar que ela. Qualquer um mesmo, com talentos, aptidões, personalidades e sonhos semelhantes, mas chances diferentes. É o que alguns chamam de destino.

E ela ainda começou a conversa dizendo que não tinha nada a me oferecer…

Roberta Simoni

Corre, criança!

No sonho eu estava indo viajar, mas não sabia para onde. Não é que eu não me lembre aonde estava indo, é que no próprio sonho eu só sabia que estava indo viajar, mas não imaginava o destino. O plano era chegar no aeroporto e escolher um rumo conforme as disponibilidades de locais e horários, contanto que o embarque fosse imediato. Eu arrumava as malas com uma euforia infantil, de quem não precisa se preocupar com nada, só em simplesmente ir e ser feliz.

Mas as perguntas práticas começaram a impregnar: iria para um lugar tropical ou frio? Que roupas deveria levar? Por quanto tempo ficaria fora? De quanto dinheiro precisaria? Comecei a sentir aquele velho e conhecido medo do desconhecido, não aquele que paralisa, mas o que move. O objetivo era sair de casa sem saber aonde estava indo, quando voltaria e, o principal, como voltaria. Eu estava dando um par de pernas de presente para o meu coração, pernas intuitivas!

Mas elas só andaram até a fila do check-in no aeroporto, quando uma senhora apareceu, me convenceu a sair da fila, me levou para uma casa grande e me trancou lá dentro. Foi aí que o sonho colorido virou pesadelo cinza.

Lembro de ter dormido e acordado, ainda na casa dela, trancada num quarto confortável e quando a mulher abriu a porta, me trazendo um prato de comida, eu escapei, correndo  escada abaixo, procurando a saída. Ela gritava que não ia adiantar, porque eu não ia conseguir fugir. Mas eu chegava até um quintal e pulava os muros das casas vizinhas até sair numa rua escura e barrenta. De repente o dia virou noite. A mulher, correndo atrás de mim, esbravejava, me chamando de tola, dizendo que eu não ia encontrar lugar melhor no mundo do que a casa dela. E eu só corria, corria, corria. Cheguei até a encontrar – e ultrapassar – um maratonista no caminho (ah, gente! Me deixa sonhar….). A essa altura, eu já tinha perdido a minha mala e as minhas sandálias, corria descalça na estrada de barro.

A velha miserável continuava atrás de mim, enfurecida. Eu já estava sem fôlego, mas continuava correndo. Quando finalmente consegui despista-la, já era tarde da noite, eu estava suja, perdida, com medo e, para piorar, eu tinha virado criança. Usava um vestido rosa rodado lindo, mas continuava imunda dos pés à cabeça. Daí acordei.

Não sabia por que eu tinha voltado a ser menina, não sabia exatamente de quem eu estava fugindo, tampouco para onde eu estava indo, mas recuperei a liberdade que era tão minha lá no começo do sonho.

Faz dias que tive esse sonho, comecei a escrever sobre ele, depois fiquei tão sem rumo no texto quanto a menina de vestido rosa rodado, suja de lama. Só hoje, enfim, tive uma epifania!

A mulher que me tira do aeroporto e me tranca numa casa é a minha própria consciência racional, a minha versão protetora de mim mesma, meu lado conservador que não entende meu instinto livre e aventureiro. É o medo personificado, fazendo das tripas coração para confiscar meu futuro.

Afinal, como esperar que o medo e a razão não reajam mal diante de tamanho disparate? Eu estava saindo de casa para me perder na tentativa de me achar, era óbvio! Uma necessidade tão grande de liberdade que vira uma coisa quase irracional, instinto puro, tipo bicho que quer sair da jaula com comida farta e água fresca para voltar para selva, com todos os perigos e desafios que ela oferece. Até os animais domesticados, tratados cheios de mimos e vontades, diante de um portão aberto, fogem.

Então deixa eu ser criança que, na primeira chance, me desprendo das mãos dos meus pais, corro pra mais longe, mesmo sem saber pra onde, só para experimentar a sensação deliciosa de estar indo para algum lugar com os meus próprios pés.

Vou voltar lambuzada de lama, mas com um sorriso impagável na cara.

(e essa é a minha resposta para você, minha senhora!)

Roberta Simoni

Sobre estradas e escolhas

past-present-future

Eu sei que domingo não é o melhor dia para filosofar, mas hoje eu acordei assim, e para piorar, comecei o dia com a cara enfiada no livro do Kundera (A Insustentável Leveza do Ser). Se sem alimentar a minha imaginação, ela já é obesa, imagina quando as palavras do Kundera se entranham nos meus poros?

“Em trabalhos práticos de física, qualquer aluno pode fazer experimentos para verificar a exatidão de uma hipótese científica. Mas, o homem, por ter apenas uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese por meio de experimentos, por isso não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a seu sentimento.” (Milan Kundera)

É claro que você, eu e todo mundo gostaria de poder saber o que vai acontecer lá na frente. De poder testar, provar e experimentar tudo antes. De poder ter garantias concretas de que tomou a melhor decisão, mas não dá. Não temos superpoderes, bolas de cristal só funcionam como enfeite e máquinas do tempo ainda estão restritas às obras cinematográficas. Nós só temos o agora, e o agora exige escolhas – na maioria das vezes – imediatas. Vai, não vai? Quer, não quer? Pode, não pode? Faz, não faz? Sim ou não?

É difícil, mas também é instigante não saber se… se você tivesse feito, se tivesse ido, se tivesse aceitado, se tivesse recusado; se você fizer, se for, se aceitar, se recusar…

Viver é um suspense, é uma caixinha de surpresas, com presentes maravilhosos dentro e presentes de mau gosto também. Mas, presente são se recusa jamais. A gente aceita e depois decide o que fazer com ele.

Quando faço o exercício de imaginar como as coisas poderiam ser ou ter sido, eu me pego arrependida de algumas escolhas que fiz. E esse tipo de arrependimento é infundado, afinal, não dá para saber se seria melhor ou pior se tivesse sido de outro jeito. Viver é e sempre vai ser um mistério, e tudo que é misterioso é arriscado demais, e nós somos muito ariscos. Desconfiamos, tememos e, às vezes, sentimos um medo tão grande que decidimos simplesmente não arriscar. E essa me parece ser a decisão mais difícil e corajosa de todas: não arriscar.

Fazer escolhas como, por exemplo, mudar de vida, de foco, de profissão, de opinião, de amor, de cidade, de país… tudo isso requer muita coragem. Mas, escolher não mexer no que você pode mudar, não deixa de ser um ato de coragem também. E se a vida é basicamente um resumo das escolhas que fazemos todos os dias, somos todos corajosos, mesmo o mais covarde dos covardes é corajoso por escolher não escolher, não fazer, não ir, não ser…

E as escolhas que deduzimos serem acertadas? Será que são mesmo? Da mesma forma que eu me arrependo em vão de certas escolhas, eu também sinto um orgulho ilusório de outras escolhas que fiz na vida. Eu penso que foram boas, mas não posso saber se teria sido melhor seguir por outra estrada, fazer a curva ou fazer o retorno e voltar.

Estrada...Não dá nem para saber o que tem lá no fim da estrada. Tudo o que conseguimos descobrir até agora é que não existe um único caminho, que cada estrada possui uma característica diferente, que há percalços no asfalto, que muitas vezes é preciso pagar pedágio para continuar seguindo, que  acidentes de percurso acontecem, que pessoas incríveis cruzaram o nosso caminho, que outras vão conosco no banco ao lado, e topam nos seguir independe da direção que escolhemos ir, que podemos acabar dando carona a pessoas erradas, mas que temos a chance de deixá-las num posto mais adiante.

Nós podemos ir e vir, podemos ter um destino ou simplesmente seguir a esmo, podemos escolher as placas que nos indicam a direção, podemos controlar a velocidade, podemos escolher nossos acompanhantes de viagens ou podemos escolher seguirmos só. E, independente das escolhas que fizermos durante a jornada, vamos continuar sem saber se acertamos, se erramos, e – principalmente – quando, onde e como essa viagem vai terminar.

Eu não vejo outra forma senão seguir em frente, mesmo que eu ainda me pegue olhando para trás de vez em quando, mesmo que os pneus furem algumas vezes, que a gasolina acabe, que o carro quebre, que eu siga de ônibus, de bicicleta, de carona, a pé. Não importa como, tampouco o meu destino, eu quero é chegar, e tenho tanta pressa… não sei bem por quê, mas tenho. Na verdade, eu acho que sei de onde vem essa urgência impaciente de viver: vem da noção da efemeridade, que me lembra o tempo todo que eu não sei quanto tempo essa viagem pode durar. Por isso eu sou multada o tempo todo por excesso de velocidade, mas não consigo – e talvez não queria – tirar o pé do acelerador.

Não sou só eu, a vida também é depressa demais.

Roberta Simoni