O meio do caminho

José Saramago

Decidi deixar o cabelo crescer e descobri que isso é tão difícil quanto largar qualquer vício que, naturalmente, condiciona e acomoda.

Tenho evitado o espelho como o diabo foge da cruz. E só agora lembro porque demorei tanto tempo para tomar coragem de cortar o cabelo. O problema não é ter o cabelo curto. Essa é a parte boa, leve, charmosa, estilosa. O problema é conseguir parar de cortar. Ele começa a crescer e eu meto a tesoura, porque só gosto dele quando tá muito curto ou muito longo.

O problema é o meio termo. A metade do comprimento. O meio do caminho.

Meu drama é sempre o processo. E não. Eu não tô falando do cabelo. Mas sim, eu tô me aproveitando da metáfora barata, porque eu sou dessas que adora ligar os fatos cotidianos mais simples às questões psicológicas mais profundas. Aliás, devo confessar que essa é uma das minhas distrações favoritas. Na falta da análise, a gente se vira com o cérebro que tem.

“Roberta, não percebe? Você trata o seu cabelo agora como lida com tudo que fica morno: se ainda não está na temperatura desejável, você descarta. Acontece que tudo antes de esquentar ou esfriar tem que passar pelo estado de mornidão em algum momento.”

Para chegar ao cume tem que escalar a montanha; para crescer na vida tem que vir de baixo; para emagrecer tem que fazer dieta; para aprender a falar outro idioma ou tocar um instrumento musical tem que estudar e treinar; para ser atendido tem que esperar; para virar adulto tem que passar pela adolescência. Em suma: para o cabelo ficar do tamanho que eu quero, eu tenho que suportar os fios de pontas duplas batendo nos ombros, a falta de corte e o jeito desordenado que ele (des)arruma de crescer.

Deixar crescer é mais difícil do que cortar porque implica em esperar.

Eu estou para a vida assim como o meu cabelo está para mim: nem muito curto, nem muito longo; nem feio, nem bonito. Um tanto desajeitado e em fase de transição. Já esteve melhor, mas também já esteve pior. Ainda não dá para fazer um coque, mas já dá para amarrar e manter preso até que eu sinta vontade de andar com ele solto por aí outra vez.

E tudo isso pra poder ir lá e cortar de novo quando tiver alcançado o tamanho que eu quero. Pois é.

Roberta Simoni

É disso que eu tô falando!

É daquele beijo com sabor de café que eu tô falando. Do café com sete gotas de adoçante que você preparou pra mim de manhã.

Eu tô falando daquela alegria condicional provocada por aqueles amores incondicionais que a gente tem na vida, poucos, mas tem.

Daquela madrugada que nós deitamos no chão de concreto do terraço lá no alto da cidade pra ver a lua e planejamos o que faríamos quando ficássemos ricos depois de ganhar na loteria, isso, é claro, se a gente lembrasse de jogar.

E daquele dia que eu tinha desistido de viajar para acampar porque estava chovendo e aí vocês apareceram na porta da minha casa com barraca e mochila nas costas e não me deram outra alternativa senão partir pro meio do mato…

Do cheiro de amaciante no lençol. Da roupa de cama limpinha que eu acabei de trocar.

Daquela chuvinha fina que cai no fim da tarde e a gente fica da sala assistindo as gotas caindo no quintal, sentindo o cheiro da terra molhando aos poucos. Desses dias de verão dentro e fora da gente, que você liga o ventilador em cima de mim e eu me jogo semi-nua no piso de madeira da sua sala e você ri, dizendo que um dia ainda vai me levar pra morar numa casa com uma piscina bem grande.

Daquela música que a gente compôs junto. Da filha linda que você batizou com o mesmo nome que o meu e agora você vem reclamar comigo que o nome acabou influenciando na hiperatividade da menina.

Eu tô falando é dos longos silêncios que não incomodam, da confortável ausência de palavras, da vontade de ficar perto sem fazer nada, dos carinhos que se comunicam sozinhos, sem a nossa ajuda.

Daquele dia que a gente parou o carro alugado numa estrada escura e completamente deserta em algum lugar entre São Paulo e Minas Gerais, apagou os faróis para ver o céu mais estrelado que eu já contemplei na vida e uma estrela cadente despencou bem na nossa frente e aí a gente começou a pular e se abraçar, até que, no meio da euforia, alguém lembrou que devíamos fazer um pedido… e então, ficamos lá, parados, num abraço mudo, olhando pro céu e sentindo nossos pés desgrudando da terra.

Das vésperas. De viagens, feriados, fins de semana, fins de saudades…

Eu tô falando de pés enroscados, beijos na nuca e sexo preguiçoso de manhãzinha.

Daquela Coca-Cola gelada e com pouco gás que eu vou tomar no gargalo assim que eu terminar isso aqui que eu tô escrevendo pra falar disso aqui que eu tô falando…

É disso que eu tô falando!!!

Vocês me entendem???

Roberta Simoni