Adeus, lucidez…

Nono Paolo Simoni com o bisneto Arthur...

 “Um problema de ser-se velho é o de julgarem que ainda devemos aprender coisas quando, na verdade, estamos a desaprendê-las, e faz todo sentido que assim seja para que nos afundemos inconscientemente na iminência do desaparecimento. A inconsciência apaga as dores, claro, e apaga as alegrias, mas já não são muitas as alegrias e no resultado da conta é bem visto que a cabeça dos velhos se destitua da razão para que, tão de frente à morte, não entremos em pânico. A repreensão contínua passa por essa esperança imbecil de que amanhã estejamos mais espertos quando, pelas leis mais definidoras da vida, devemos só perder capacidades. A esperança que se deposita na criança tem de ser inversa a que nos dirige. E quando eu fico bloqueado, tão irritado com isso, sem dúvida, não é por estar imaturo e esperar vir a ser melhor, é por estar maduro de mais e como que apodrecendo, igual aos frutos.  Nós sabemos que erramos e sabemos que,  na distração cada vez maior, na perda de reflexos e de agilidade mental, fazemos coisas sem saber e não as fazemos por estupidez. Fazemos por descoordenação entre o que está certo e o que nos parece certo e até sabemos que isso de certo ou errado é muito relativo. É tudo mais forte do que nós.”

(Valter Hugo Mãe – A Máquina de Fazer Espanhóis)

Agora ele anda beijando a foto do bisneto até babar o pobre coitado do retrato. Acorda às 3h da manhã, se veste e quer ir até a banca comprar o jornal. Vai dormir às quatro da tarde, mas não sem antes desejar boa noite e bons sonhos à Verinha, sua esposa. Já não toma banho nem remédio sozinho. Nunca sabe que horas são ou em que mês estamos, mas ainda consegue vigiar as despesas domésticas.

“Fulano ficou caduco!”. Sempre que eu ouvia alguém dizendo isso, ficava pensando: mas como é isso? Acontece assim, de repente? Um dia você tem controle de “tudo” e no outro já não comanda mais seu corpo e não é mais dono do próprio juízo?

É. É assim mesmo. Agora eu sei.

No mês passado, quando fui ver meu avô, ele quase não falava, quando muito resmungava. Reclamava da comida da minha avó, das contas para pagar, das dores nas pernas e por fim, com os olhos caídos e com a voz arrastada me confessou que andava cansado de viver. Partiu meu coração em moléculas. Disse que velhice era coisa muito triste e que esse castigo ele não desejava para ninguém. Estava claro: mio nono estava esperando a morte chegar. Me tranquei no banheiro para chorar. No mesmo banheiro que eu me tranquei tantas vezes para brincar de pique-se-esconde quando criança. Mais de vinte anos se passaram e eu continuava me escondendo no mesmo lugar.

Sempre que vou visitar meus avós, me despeço do meu avô com um aperto no peito, beijo-lhe mil vezes a testa, digo que o amo e volto uma ou duas vezes para abraçá-lo antes de atravessar a porta da rua. O medo de ser a última vez é perturbador.

Agora, vovô Palolito, o italiano ativo e enérgico, com seus 85 anos, alterna entre a depressão de um velho e a euforia de uma criança. Teve uma crise de choro dia desses porque percebeu que não consegue mais ler o jornal, acabou de perder uma das vistas. Já não passa nenhum dia sem sentir dores agudas e já nem sabe onde dói mais.

É dor de existir no mundo há muito tempo. E na gente dói a aflição de não poder fazer nada.

Mas é nos dias em que fica com o juízo mais desbaratado que é mais feliz. Fica mais receptivo, contente, mais falador, repete a mesma coisa um monte de vezes, conta umas histórias, inventa outras, prega mentiras, faz tudo ao contrário sem perceber, e por isso mesmo, pouco sofre. Não dá conta de muita coisa.

Me puxou pela mão e me levou pra conhecer o jardim. O mesmo jardim que visito desde menina, quando as plantas eram maiores do que eu. Me entusiasmei sinceramente com a visita, como se estivesse (re)conhecendo aquele espaço, porque estava – pela primeira vez em muito tempo – vendo o vô entusiasmado, feito garoto que chega trazendo nas mãos o desenho que fez na escola, ansioso para mostrar sua nova obra de arte.

Elogiei o jardim, enchi ele de beijos e perguntei alguma coisa que ele não ouviu. Tentei de novo, mas percebi que precisaria falar muito mais alto para que ele me escutasse. Não sei por quanto tempo fiquei olhando pra ele, pensando em como deve ser triste perder os reflexos e ter os sentidos todos assim, desgastados pelo efeito do tempo. Mas certamente não era nisso que ele pensava, pois sorria. Sorria muito. Sentia ou pensava em alguma coisa que o deixava sereno. Estava num dia especialmente bom. Não estava lúcido.

É que agora, de todas as faltas e insuficiências, a ausência de lucidez tende a ser a mais generosa.

Roberta Simoni