Um café com gelo, por favor?

housewives-coffee-56-wmk

– Um café com uma pedra de gelo, por favor.

– Desculpa?

– Quero café e gelo, por favor.

– Minha senhora… nós não servimos café com gelo aqui.

– Não?

– Não. As opções que temos para acompanhar o café são: leite, açúcar ou adoçante.

– Vou querer açúcar… e gelo.

– Mas, minha senhora…

– Ok. Vamos começar de novo. Vocês servem café aqui, certo?

– Certo.

– E servem bebidas com gelo também, certo?

– Certo.

– Então por que eu não posso querer meu café com gelo?

– Porque não faz sentido.

– Sentido? Se você tem o café e tem o gelo e eu quero os dois juntos, qual o sentido de você não me servir?

– Não prefere um café gelado?

– Não. Gostaria muito mesmo de tomar um café bem quente… com uma pedra de gelo.

– Tudo bem, como quiser. Já trago.

O garçom se afasta para preparar o café de Laura. Por detrás do balcão, ela o vê cochichando com a garçonete, que olha na sua direção e dá uma risadinha sem graça quando percebe que ela os observa.  Alguns minutos depois, ele volta com seu pedido. Laura bebe seu café sob olhares de desconfiança e estranheza, coisa que não a incomoda nem um pouco. Já faz tempo que Laura deixou de se importar em fazer papel de louca.

– A conta, por favor.

– A senhora deseja mais alguma coisa?

Desejo. Na verdade, o café com gelo não funcionou como eu esperava. Eu preciso que você me arrume alguma coisa bem quente para me aquecer por dentro e outra bem gelada para esfriar a minha cabeça, você consegue? Daquelas que fazem o cérebro doer de tão congelantes, sabe? Só que eu preciso das duas coisas ao mesmo tempo: aquecer meu coração e esfriar a minha cabeça. – é o que Laura sente vontade de responder mas, na verdade, só diz:

– Não, obrigada.

– Posso incluir os 10%?

– Claro! Aproveita e inclui o café com gelo no cardápio de vocês. – brinca.

– Farei o possível senhora, afinal, o cliente tem sempre razão, não é?

– Olha, ter razão faz tanto sentido pra mim quanto o café com gelo faz para você.

Laura paga a conta e vai embora pensando sobre o quanto gostaria de trocar todo aquele monte de razões que vem acumulando a vida toda por um bocado da tranquilidade daqueles que desconhecem o peso do certo e errado. Laura não quer ser a mulher que faz a coisa certa, a cliente que tem razão. Laura quer cometer erros fantásticos e ter a cabeça fria e o coração aquecido. Mas sabe que isso é tipo café com gelo: simplesmente não funciona.  

Roberta Simoni

Passando pela janela…

Não passo por aqui há um tempo por motivos de: estou escrevendo. A-há! Achou que eu fosse dizer que estou sem tempo, atarefada com o trabalho ou com preguiça, etc… aquela minha mesma ladainha de sempre, né? Mas a verdade é que – pasme! – eu ando mesmo escrevendo. Só não tenho publicado quase nada do que escrevo porque, bom… logo logo eu conto. Prometo! 😉

Na semana passada escrevi um artigo para o site Amor Crônico (onde sou uma das autoras colaboradoras), e pensei em compartilhar aqui na Janela de Cima, de onde ando tão sumida e pra onde sempre volto, por mais que demore um pouquinho, porque vivo saudosa desse cantinho.

Então, chega de conversa e vamos ao texto, que você logo vai descobrir que continuará sendo uma longa e divertida conversa. Vem comigo que no caminho eu te explico!

[…]

O amor é lindo. Às vezes.

Via Amor Crônico

O amor tem cara de bicho

Oi, Leitor. Vou te chamar assim, de Leitor, com essa maiúscula aí na primeira letra porque não sei o seu nome próprio, então vou te batizar de Leitor até que eu descubra seu nome. Isto é, caso você queira se identificar ao final deste texto. Fique absolutamente à vontade quanto a isso, pois eu estou totalmente confortável aqui, falando e você aí, lendo, mesmo sem talvez a gente ainda nem se conhecer.

Então, Leitor, eu não sei quantas vezes você já acessou esse blog, quantos textos já leu, não sei qual é o seu perfil, qual o seu estilo preferido de narrativa, não sei o que você espera encontrar quando você entra num site chamado “amor crônico”, mas, me colocando no lugar de alguém que entra aqui pela primeira vez, suponho que espere encontrar textos falando sobre amores crônicos. Viajei? Ou para você, a palavra crônica é só uma alusão ao gênero de narração?

Fato é que andei lendo nossos textos (incluindo os meus) mais criticamente – e agora corro o risco de ir para o paredão das escritoras e ser eliminada deste espaço crônico pelas minhas parceiras autoras – e notei que andamos falando mais do amor em sua beleza e plenitude do que propriamente em sua essência crônica e aguda. O que me levou a pensar: o amor sempre é belo, a vida sempre é bela, nós somos todas belas ou andamos floreando um cadinho a vida pra ela ficar mais agridoce?

É claro que todas nós temos vidas distintas e vivemos momentos distintos. De modo que vivenciamos o amor de forma absolutamente diferente umas das outras a julgar pelo momento que atravessamos. O mesmo vale para você, Leitor, que pode se identificar ou não com o que você está lendo dependendo da fase que você está atravessando agora, certo? Certo.

Sendo assim, caro Leitor, deixo aqui um aviso para que você decida prosseguir ou não adentrando comigo por entre essas linhas retas repletas de raciocínios tortos: este texto é sobre o amor num estilo mais próximo ao de Miguel Esteves Cardoso em “O Amor é Fodido” ou ao de Charles Bukowski em “O Amor é um Cão dos Diabos”. Obviamente não me comparando a nenhum desses dois gênios literários, apenas fazendo uma singela menção a abordagem de amor feita por eles nesses clássicos. Não se preocupe, pois você não precisa ter lido nenhum desses livros para saber que não estamos falando aqui do amor na sua forma mais poética e romantizada, uma vez que os títulos são totalmente autoexplicativos, não é mesmo?

Eu, que já falei do amor tantas vezes, eu, que sou criatura assumidamente sentimental e passional, eu, que acho o amor uma coisa tão linda, essencial, esplêndida, maravilhosa (e creia-me: não existe qualquer vestígio de ironia nessa afirmação), eu, que preciso de amor para viver, eu, que acredito em toda forma de amor, eu, que aposto todas as minhas fichas no amor, devo assumir: o amor, muitas vezes, é mesmo um cão dos diabos.

Você, Leitor, que ainda continua aí, não se sinta mal por achar que o amor, às vezes, passa longe de ser divino. Você não está sozinho. Alguma vez você sofreu por amor, Leitor? Sofreu, né? E quando isso aconteceu, alguém deve ter dito a você que se fosse amor de verdade, não te traria sofrimento, não é? Pois é. Mas isso não é verdade! O amor quase nunca é um mar de rosas. Que o amor é fogo (que arde e não se ver e blá blá blá…) todo mundo sabe, mas se ele vai aquecer o seu coração ou se vai incendiar a sua casa, nunca se sabe. Algumas vezes ele vai te levar ao céu. Outras vezes, direto para o inferno, sem escalas. Amor é coisa de matar e morrer, de fazer muita gente sã perder o juízo, a cabeça e até o famigerado amor próprio.

Têm dias que amar é o maior desafio de todos, têm dias que amar é um verdadeiro ato de coragem.“Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Beleza. Bora amar o próximo, mas dá pra não ficar tão próximo assim, por favor? Imagine-se amando aquele seu “colega” filho da puta lá da firma, aquele cretino que te deu uma fechada no trânsito hoje mais cedo ou aquele safado que se aproveitou para te dar aquela roçada básica no ônibus lotado hoje de manhã. Pois é.

Nem precisamos ir tão longe, né Leitor? Às vezes é difícil amar até mesmo quem a gente ama muito, muito mesmo. Quem normalmente a gente ama genuinamente, sem precisar fazer qualquer esforço. Você me entende, Leitor? Sabe aqueles dias que amar o seu próximo mais próximo vira uma verdadeira missão? Amar seu filho lindo quando ele esgota toda a sua paciência. Amar sua mulher incrível quando ela está no auge da TPM. Amar seu maridão quando ele faz aquela grosseria gostosa e gratuita com você. Amar a sua simpática sogra ou a sua adorável mãe quando elas se intrometem desenfreadamente na sua vida. Amar o seu cãozinho fofo quando ele faz cocô no seu tapete persa. Amar o seu gatinho quando ele destrói o seu sofá novinho.

Entenda uma coisa, Leitor: amar é uma arte. Agora, entenda outra coisa: não é todos os dias que acordamos artistas. Ou vai me dizer que você se sente sempre inspirado, Leitor? Que todos os dias seu coração está cheio de amor pela vida e por todos os seres vivos? Bom, então vou para de te chamar de Leitor e vou passar a te chamar de “E.T.” a partir de agora, pode ser? Corta essa! Só estamos eu e você aqui, não tem ninguém olhando, não precisa fazer cena!

O amor costuma exigir sacrifícios enormes e eventualmente ele vai deixar o seu coração partido, em frangalhos. O amor não vai ser lindo todos os dias. Eu aposto que você sabe disso, Leitor, mas se você ainda não sabe, eu, que já criei certa afinidade contigo depois de todas essas linhas, me sinto na obrigação de te alertar: têm dias que o amor vai ser fodido, amaldiçoado, dolorido, feio e vai ter cara de bicho.

Ele vai te meter medo, vai te assustar e te fazer sentir dores em partes do seu corpo que você nem supunha que existiam. Mas sabe o que é mais louco nisso tudo, Leitor? É que essa porra de amor continua sendo a coisa mais alucinante, maravilhosa e intensa que eu, você e qualquer ser humano já chegou perto ou vai chegar de sentir na vida. No fim das contas, Leitor, o amor é o que faz da gente parte de um mesmo todo, é que nos aproxima e me faz estar aqui escrevendo e você aí, lendo. É o que faz a gente começar tudo de novo, todos os dias, apesar de tudo, apesar de todos, apesar de mim e de você.

Vai entender, Leitor, vai entender…

Roberta Simoni

Diferente, mas igual.

Iguais

Fui abordada por uma moradora de rua que já vi algumas vezes ali pela Glória. Uma mulher negra, alta, que deve beirar seus trinta e poucos anos e que tá sempre falando alto e mexendo com todo mundo que passa por ela na rua. Hoje foi a minha vez:

“Olha, você me parece uma moça bem informada e inteligente, por isso, vou direto ao ponto: sou moradora de rua, mendiga mesmo, e tô com fome, não tenho nada para te oferecer, mas se você tiver algum trocado aí pra me dar...”

Não costumo dar dinheiro a pedintes, quando posso – e quando eles aceitam – pago um lanche na lanchonete mais próxima, mas estava com pressa e tinha uns trocados no bolso. Enquanto contava as moedas para dividir com ela e com a passagem que usaria para pegar o metrô, observei que ela usava uns pedaços de pano que fez de mini-saia e top para se cobrir e brinquei: “gostei do visual”. Ela foi logo se desculpando pela forma como estava vestida. “Não, não… você não tá entendendo, eu realmente gostei da sua roupa, especialmente com o calor que tá fazendo hoje, é de se invejar!” Ela riu e ficou me olhando contar as moedas misturadas com algumas notas de R$ 2,00 amassadas. Expliquei: “sou jornalista”.

Quanto terminei a contagem daquela pequena fortuna que (supostamente) pagaria o almoço dela e a minha passagem de volta para casa, perguntei seu nome. Ela ficou me olhando por um longo tempo e, por fim, disse: “você é diferente”.

“Eu sei, me sinto assim o tempo todo.”

“É, eu também.”

Ficamos nos encarando por segundos quase longos, como dois E.T.s que se reconhecem na multidão, até ela se virar, ir embora e, dois passos a seguir, parar novamente, olhar para trás e, com as moedas numa mão e a outra apoiada na cintura, me encarar mais uma vez, com uma expressão irônica, e dizer: “Afff… sabia que você me fez ficar pensativa?”

“É, você também.”

Sempre penso no que pode ter acontecido na vida de uma pessoa que acabou indo morar nas ruas. E sempre, sempre penso que a vida, no fim das contas, é uma tacada de sorte ou azar. Dependendo de onde se nasce e sendo filho de quem se é, qualquer um pode parar no mesmo lugar que ela. Qualquer um mesmo, com talentos, aptidões, personalidades e sonhos semelhantes, mas chances diferentes. É o que alguns chamam de destino.

E ela ainda começou a conversa dizendo que não tinha nada a me oferecer…

Roberta Simoni

Pra caber no encaixe…

– Onde dói?

– Dói tudo, doutô!

– Aqui dói?

– Dói também. Dói até os ossinho da alma.

– Alma não tem osso, menina!

– Pois a minha tem sim, sinhô! Não tá vendo essas fraturas expostas aqui?

– Cadê?

– Aqui, doutô! Os sentimento tudo pulando pra fora. Faz eles voltarem pra dentro, doutô, faz?

– Filha, eu não posso tratar de alma fraturada. Como eu vou fazer para te engessar depois?

– Mas se o senhor que é o médico não sabe, como eu vou saber? Me disseram que o senhor podia dá um jeitinho de me ajustar no lugar.

– Mas eu não posso, criança!

– E de lego, pelo menos, o senhor entende?

– De lego???

– É! Aquele jogo de encaixar aquelas peças coloridinhas, sabe?

– Ah, sei…

– Sabe? Ah, então o senhor pode me curar! Mamãe disse que a gente é igual a peça de lego, uma encaixa na outra pra montar um brinquedo legal.

– E onde eu entro nisso?

– O sinhô entra me fazendo entrar, ora! É que me dói tudo porque eu não me encaixo nas outras pecinhas… eu forço daqui, me machuco de lá, mas não entro em nenhuma, nada me cabe e eu não caibo em nada, doutô! Me conserta pra eu caber em algum lugar, pufavô?

– Menina, você não é uma peça de brinquedo! Que ideia é essa?

– Também não sei de quem foi essa ideia de fazer a gente igual a essas pecinhas de montá. Mas isso me parece coisa de um tal de “Jerico”. O senhor conhece esse moço, doutô? Minha avó sempre fala que as coisas que eu faço se parecem com as ideias dele, mas eu juro pela minha mãe mortinha que nunca copiei a ideia de ninguém! O senhor acredita em mim?

– Criança, eu…

– … eu sei, doutô! O senhor também não acredita em mim, não é? Tudo bem, não precisa acreditar, só me conserta! Deve ter conserto para peças defeituosas assim, feito eu, não tem?

– Escuta aqui, criatura, você não está doente nem é defeituosa. O seu problema é imaginação fértil.

– Engraçado, o senhor pareceu até meu pai falando agora! Então como é que faz pra parar de fertilizar a cabeça da gente, doutô?

– Não existe anti-fertilizante cerebral para transformar alguém numa peça funcional.

– Ah, não? E se o senhor inventasse? Podia ficar rico com isso, já pensou?

– Rico eu não sei, mas talvez eu conseguisse fazer você caber dentro da realidade.

– Ah, então melhor deixar como tá, né doutô? Se existir já me dói todinha, imagina se eu tiver que caber nessa tal de realidade? Dizem que lá é úmido e apertado, eu vou acabar transbordando e depois vai dar um trabalho danado pra me juntar…

Roberta Simoni

Vinte e Seis Reais (ou A Fortuna de Ramalho)

Chiquinho Ramalho e Paulo Cardoso - by Roberta Simoni

Mal de Alzheimer e Arteriosclerose avançados foi o diagnóstico que os médicos deram para o meu avô paterno. Francisco Ramalho, popularmente conhecido como “Chiquinho da Praia do Siqueira”, o maior engenheiro sem diploma que eu conheci, o sujeito rabugento e engraçado que muito antes de perder o juízo já falava sozinho, esbravejando com Noé por ele ter, supostamente, permitido que um casal de pernilongos entrasse na arca. Pô, Noé, com tanto bicho para salvar…

O mesmo sujeito que há alguns anos contrariou a família toda quando assumiu o namoro com uma mulher que – todo mundo sempre soube – não é flor que se cheire. Nem na qualidade de flor é possível encaixar essa senhora. A mesma, inclusive, que tratou de abandoná-lo na porta da casa dos meus pais há algumas semanas, depois de ter tirado todo o (pouco) dinheiro do velho doente e caduco que ela, é claro, se cansou de cuidar.

Dia desses ele me contou que tem uma neta que mora no Rio de Janeiro…

– É mesmo, vô? Que legal! Como ela se chama?

– Ela quem, menina?

– Sua neta…

– Neta? Eu não tenho neta.

– Tem sim, vô. Sou eu, a sua neta que mora no Rio, lembra?

– No Rio? Já nadei, sim. Mas agora não quero nadar, não… anda, menina, devolve o meu dinheiro!

R$26,00 é a quantia que a namorada do meu avô fez o favor de deixar no bolso da bermuda dele quando decidiu “devolvê-lo” aos filhos. Vinte e seis reais é o valor da fortuna do Vô Chiquinho. Todos os dias ele enrola, desenrola e depois enrola de novo as notas de real com um pedaço de barbante, dorme e acorda segurando aquilo que acredita ser o seu maior tesouro. Tesouro que tivemos que colocar dentro de um saco plástico transparente e levar para debaixo do chuveiro com ele. Só assim foi possível mantê-lo no banho sem que ele tentasse fugir com medo de ser roubado nesse interím higiênico.

Papai morreu pra mim! – Era o que meu pai afirmava categoricamente antigamente, quando se referia ao meu avô. Mas pai nenhum renega um filho e, de um dia pra outro, foi nisso que o meu avô se transformou para o meu pai: um filho. E ele que mal conseguia chegar perto das fraldas sujas do neto, agora escova os dentes do pai, faz a barba, limpa o bumbum, dá banho, comida na boca e dorme ao lado, sobre vigília constante.

Papai estava certo: o pai dele morreu. E no lugar dele ficou uma criança pirracenta e de cabelos brancos, que se nega a tomar banho depois de fazer xixi nas calças e que – sem o menor sinal de afeto ou gratidão – o acusa de ladrão.

Sim… porque meu pai não confessa, mas ele faz tudo isso por causa da fortuna, a gente sabe. Há um interesse por trás de toda essa enorme compaixão e generosidade. Só uma coisa justifica tanto cuidado e sacrifício: amor desmedido – a verdadeira fortuna do herdeiro.

Com muito custo consegui convencê-lo a sentar-se comigo na varanda. Arrumei mais uns dois metros de barbante para ele enrolar o vil metal. Aquilo renderia uma, com sorte, duas horas de distração pra ele e de descanso para mim. Peguei o livro e li um trecho em voz alta, mas ele se mostrou profundamente irritado, nada contra Valter Hugo Mãe, acredito. Nada pessoal também, é só que a leitura estava atrapalhando sua concentração no mecanismo de enrolar o barbante em torno das valiosas notas.

Papai chegou e trocamos de turno.

Da janela da cozinha consigo ver os dois. Meu velho com o velho dele, tão parecidos, com a diferença do cruel efeito do tempo, se alternando entre pais, filhos e dois completos desconhecidos.

Vovô andando na frente, a passos lentos e rastejantes, papai um pouco atrás, seguidor silencioso e quase oculto…

Agora vovô está parado em frente à roseira que era da minha avó e que papai batizou de “Dona Norma”. Meu pai sente o coração acelerado, alimenta uma esperança genuína de que a plaquinha com o nome da mãe cause qualquer tipo de reação no pai. Mas ele, naturalmente, não esboça nenhuma emoção, nem imagina quem foi Dona Norma. Sua preocupação é outra: encontrar o esconderijo perfeito para enterrar seu tesouro. Escolhe a planta ao lado. Não supõe que está sendo vigiado. Age sorrateiro feito menino astucioso. Papai não tenta impedí-lo, deixa que ele estrague seu jardim, que suje as mãos e a roupa de terra e, principalmente, que acredite que sua missão foi cumprida.

O filho observa o pai, tenta entender cada movimento daquela nova pessoa que está (des)conhecendo, procura decifrar o que se passa pela cabeça dele e acompanha de perto aquele doloroso processo, não o de crescimento, como no caso de um filho pequeno, mas o de envelhecimento de um pai doente.

Depois se aproxima devagar, pega o pai pela mão suja de terra e o conduz para dentro de casa. Enquanto tenta pacientemente convencê-lo a se lavar, Ramalho diz:

– Rapaz, os ladrões levaram todo o meu dinheiro, você viu?

– Eu vi, papai… mas fica tranquilo que eu pego eles e trago seu dinheiro de volta! Eles vão ver só…

Roberta Simoni

Eu, Frida.

“Pés, para quê os quero se tenho asas para voar?” (Frida Kahlo)

– Você não vê? Tem uma Frida Kahlo escondida aí dentro!

– Engraçado você citar a Frida, tenho pensado tanto nela ultimamente…

– Eu sei que você tem pensado na Frida. É óbvio.

– É óbvio?

– É. E mesmo assim você faz de conta que não entende. Então me perdoe se, às vezes, eu esbarro o dedo no seu cu e te incomodo, mas parece que você tá esperando um sinal dos céus e isso é muito engraçado.

– Então é isso? É divertido ficar me assistindo ser estúpida?

– É, muito! E é uma das coisas que me irritam em você e que eu gosto que me irrite. Eu quero te dar colinho mas quero enfiar o dedo no seu rabo para você sair do conforto do desconforto.

– Incrível como o desconforto pode ser mesmo tão confortável…

– Eu sei, e se eu hesito em lembrá-la do seu próprio tamanho é só porque eu só tenho a perder com isso, afinal… tudo indica que não sou o seu Diego Rivera. Mas aí talvez seja só bobagem minha.

– E por que não pode ser você o meu Rivera?

– Se pode ser só bobagem minha, então talvez não mereça que eu enumere os motivos.

– Odeio quando você é indireto…

– Eu sei.

– Numa hora dessas eu pegaria a sua cabeça e encheria de beijos.

– Encheria?

– Sim. Tudo para não ter que dar com ela contra a parede.

“Eu sofri dois acidentes graves na minha vida… Um em que um bonde bateu (…) e o outro foi Diego.” (Frida Kallo) 

Roberta Simoni

Mais uma tragada…

Fuma pra mim?

Como é?

Fuma pra mim! (e o que antes era um pedido, virou uma ordem e aquilo a excitou como se ele tivesse pedido para ela gozar pra ele, exatamente como ele havia feito, minutos antes…)

Você sabe que eu tô tentando parar, inclusive porque você reclamava que...

Eu sei… só fuma. Eu não tô te pedindo que me ame, mas que acenda um cigarro.

Ela levantou da cama, caminhou lentamente até a mesinha ao lado da janela, abriu a bolsa, pegou o maço de cigarro e o isqueiro. Sentou na ponta da cadeira, com o dorso ereto, o quadril empinado, e acendeu aquele cigarro barato que ele tanto detestava. Ficou ali, nua, muda, na penumbra do quarto, contra-luz, fumando, sem olhar pra ele. Fingindo indiferença, mas consciente da sensualidade de cada movimento minuciosamente observado, de cada tragada, da fumaça que assoprava lentamente.

Ele não tinha cinzeiro em casa. As cinzas do cigarro caiam no chão e ela não se importava. Nem ele.

Foda-se o teu tapete branco.

Por que você se pinta tanto?

– Por que, diabos, você tem um tapete branco no seu quarto?

– Pelo mesmo motivo que você se pinta…

– Se isso te irrita tanto, por que você me pediu que viesse?

– Eu não pedi que você viesse maquiada, nem com as unhas e os cabelos pintados de vermelho…

– Mas me pediu pra fumar pra você…

Ela descruzou as pernas, apoiou o cigarro na ponta da mesa, bem na direção do tapete branco. De propósito, obviamente. A fumaça subia e escapava pela janela, junto com os pensamentos dele. Enquanto ele acompanhava o caminho da fumaça, ela o encarava, ao passo que ele, ao perceber o desafio, devolveu o olhar com outra pergunta:

– Por que você veio?

Ela riu.

Pra ter certeza de que você se arrependeu, pra te ver agonizar silenciosamente, bem assim, do jeitinho que você tá fazendo agora…

– Sádica.

– E quanto a você? Por que me chamou?

– Pra lembrar…

Com o tempo, a memória falha. E como se não bastasse falhar, sabota. Ele só lembrava do sorriso dela, da pele lisa, do corpo lindo, do jeito irreverente e falador, das noites em claro fazendo amor. Precisava lembrar dos vícios, ver as vísceras dos defeitos de novo, bem de perto, pra ter certeza de que ela não era mulher pra ele, com aquelas roupas justas, o sutiã que nunca combinava com a calcinha, o cabelo multicolorido, a maquiagem exagerada, as unhas mal pintadas de vermelho aberto, roídas nas pontas, o cigarro fedorento que ela fumava com um charme quase insultante, deixando a marca do batom vermelho de péssimo gosto.

O cigarro durou a eternidade do silêncio, com diálogos espaçados. E ela ainda haveria de fumar outros tantos pra ele lembrar do que precisava esquecer…

Isso se ela não o tragasse antes, entre um cigarro e outro.

(K.: a música que você postou na madrugada caiu como uma luva, veja só… )

Roberta Simoni

Da série “Diálogos Emblemáticos II”

Aquele que nunca desiste: Nunca vou desistir de ter uma noite de amor, luxúria, sedução e conversas literárias com você.

Aquela que nunca cede: Pois deveria.

Aquele que nunca desiste: Olha, se você topar, ganha até um texto de brinde!

Aquela que nunca cede: Você tá tão acostumado a seduzir com sua escrita que fica me oferecendo literatura em troca de orgias.

Aquele que nunca desiste: E nem assim você pretende ceder às minhas investdias?

Aquela que nunca cede: Não!!! Você não presta!

Aquele que nunca desiste: Ah, eu queria poder dizer o mesmo…

Roberta Simoni

Filha de peixe…

Acordo hoje com o seguinte e-mail enviado pelo meu pai:

Depois de alguns minutos com o celular colado ao ouvido e ouvindo aquela musiquinha básica, sem contar que antes tive que prestar atenção numa série de números, para “ver” qual eu deveria “apertar”, uma moça me atendeu: “Boa tarde ! Elizabeth falando. Com quem eu falo ?”


__ Paulo Cardoso… Tudo bem com você, Elizabeth ? A família “tá” boa ?
__ Tudo bem, senhor… Em que posso ajudar ?
__ Elizabeth, por favor, me confirma uma coisa: é verdade que eu tenho o direito de pedir uma cópia da gravação dessa nossa conversa ?
__ Sim, senhor !
__ E o que é necessário ? (Aí ela falou uma série de documentos e procedimentos).
__ Elizabeth, essa gravação alguém ouve, como por exemplo, um diretor ou presidente da Vivo ?
__ Sim, senhor… O nosso… (não me lembro quem ela falou que ouvia).
__ Tá bom…
__ Em que posso estar ajudando, senhor ? (detesto gerundismo: estar falando, estar providenciando, e uma cacetada de “estar”).
__ É que eu quero mandar a vivo pra merda… (daí, ela não parava de rir, tentando se conter, mas rindo muito).
__ Só isso, senhor ? Mais alguma coisa em que eu possa estar sendo útil ?
__ Por enquanto, não… Vou pensar direitinho, e da próxima vez, eu mando pra outro lugar, tá bom ? Obrigado pela atenção. Você é muito simpática. Fica com Deus. Jesus te ama !”

 

Sei que é ridículo mas fiquei contente, pois disse tudo com muito amor, carinho e educação…”

Faltou só ele dizer: “(…) disse tudo com muito amor, carinho, educação e ironia…” especialmente na parte do “Jesus te ama” porque o meu pai é o menos religioso dos seres.

Eu compreendo perfeitamente a elegante satisfação dele. O problema continua e mandá-lo a merda (com tamanha classe ou não) não vai resolver nada, mas o efeito que surte é impagável: alivia a alma.

Aí me pus a pensar: como eu poderia querer ser diferente se a herança genética se faz presente? O mundo faz todo o sentido, afinal.

Roberta Simoni