Eu queria ser do tipo que berra!

Carminha Épica

Às vezes eu queria ser do tipo que berra. Que quebra as coisas, se descabela. Que atira pratos contra a parede quando contrariada. Queria ser tipo aquelas mulheres que a gente vê nos filmes e nas novelas. Acho essas cenas épicas. São de um histerismo libertador, mas só olho admirada porque existe uma televisão entre mim e os atores que estão compondo a cena. Quando é ao vivo e a cores, além de eu não ter coragem de quebrar nem um copo de requeijão, também fico tremendamente perturbada se alguém começar a fazer isso comigo ou com outra pessoa na minha presença.

Ou seja, eu queria ser do tipo que berra, mas sou do tipo que chora. Que treme e que procura um lugar para se esconder. Não bastando me comportar de maneira tão irritantemente frágil quando alguém começa a gritar comigo, se sou eu quem está tomada pela cólera, pela revolta ou pela mágoa, eu também choro, no lugar de gritar ou de jogar um utensílio ou outro contra a parede para aliviar a tensão.

Muitas vezes, tudo o que eu queria era não pensar em nada na hora da raiva. Mas penso. Quando sinto vontade de gritar, me preocupo em perturbar a paz dos vizinhos. Quando tenho o impulso de quebrar alguma coisa, penso no trabalho que vai dar para limpar tudo depois. Pior ainda se for alguma coisa de valor, penso logo no prejuízo que vou ter.

No momento, estou numa relação complicada com meu computador. Já me imaginei mil vezes pisoteando-o até que ele perca a forma de um notebook e não se aproveite dele mais nem uma tecla. Mas é claro que não o faço, porque além de ter custado para pagar todas as prestações, ele é o único que tenho e preciso desse cretino para trabalhar. Aí penso: talvez quando eu comprar um novo, eu possa ter o prazer de destruir esse daqui. Mas aí, desisto logo em seguida, porque quando ele não servir mais pra mim, ainda poderá servir pra outra pessoa.

Um dia, quando eu ainda morava com meus pais, acordei com um barulho estranho vindo do quintal. Quando fui ver o que era, dei de cara com meu pai ajoelhado sobre umas folhas de jornal, martelando uma garrafa térmica. Quis saber o que a garrafa tinha feito de tão mal a ele para ter um fim tão trágico. Não sobrou nada da pobre coitada.

Passado o momento de raiva, ele me contou que todo santo dia pedia para minha mãe não travar a garrafa porque ele tem o costume de beber café o dia inteiro e toda hora que ia se servir, tinha que destravar a garrafa. Custava ela deixar destravada? Não custava, obviamente. E ela não fazia para provocar, mas, por hábito, não conseguia evitar. Até que nesse dia ele acordou determinado. Foi à loja e comprou um modelo diferente, desses que não tem trava, basta apertar. Colocou a garrafa térmica nova na cozinha, foi lá fora, cobriu o chão com papel de jornal velho para não ter que catar os estilhaços depois, nem correr o risco de alguém pisar e se machucar e usou o martelo para acabar com a bandida (Coronel Mostarda matou a Garrafa com um Martelo no Quintal – quem se lembra do jogo Detetive?)

Na época eu ri e considerei aquela mais uma maluquice do meu pai. Hoje eu o compreendo perfeitamente. Ele fez com a garrafa, muito provavelmente, o que sentia vontade de fazer com a minha mãe toda vez que ele encontrava a garrafa travada. Mas antes de acabar com a garrafa, ele planejou sua morte minunciosamente, sem causar danos a ninguém e sem que o prejuízo de comprar uma nova sobrasse para outra pessoa. Final feliz pra todo mundo. Ele parou de reclamar com minha mãe por causa da maldita garrafa, ela parou de ter que se justificar toda hora por uma coisa aparentemente banal e ninguém se machucou. Só a garrafa (in memoriam).

Outra cena memorável foi a luta que ele travou contra um sorvete enquanto assistíamos tevê. A gente adorava ver filme no quarto deles, minha irmã, eu e meus pais ficávamos aninhados na mesma cama. Meu pai estava recostado na parede tomando sorvete quando uma colherada caiu no seu peito, ele levantou resmungando e se limpou. Voltou, continuou tomando o sorvete e derrubou de novo e, com a própria colher, tirou o excesso do peito. Na terceira vez que caiu, ele virou o pote todinho de sorvete em cima dele e continuou assistindo o filme como se nada estivesse acontecendo. A essa altura, a gente já estava às gargalhadas e minha mãe mandando ele ir se limpar para não sujar os lençóis. Ele se levantou satisfeito dizendo: “ganhei do sorvete”. O fato de ter ficado todo lambuzado, pouco importou pra ele que, afinal, venceu a batalha contra um sorvete fugitivo.

Apesar de eu achar essas anedotas hilárias quando se tratam de objetos inanimados, o mesmo não se aplica a conflitos humanos. Se você não sabe o que é ter vontade de gritar, socar a cara de alguém ou de esfrega-la no asfalto, nunca entenderá essa aflição.

Quando eu tô muito, muito puta, eu grito contra o travesseiro que é pra não incomodar ninguém. E de preferência, choro no banheiro que é pra ninguém ver. Mas se a vida fosse um cenário de novela, eu me aproveitaria disso para quebrar o estúdio inteiro quando estivesse furiosa.

“Perdi o controle” é uma frase justificativa quase bonita. Não que eu ache bacana quem perca a cabeça por qualquer coisa. Na verdade, eu não acho nada admirável alguém que perde o controle, faz escândalo, cria barraco… embora pareça que é isso que estou dizendo desde o começo deste texto. O que quero dizer com isso tudo é que pessoas que agem dessa maneira reprovável, mesmo causando estragos materiais em grandes proporções, se libertam. Extravasam, não reprimem seu ódio, colocam pra fora de algum jeito. Enquanto eu sigo me esforçando para controlar as minhas emoções nocivas.

Além disso, pessoas que se comportam de maneira explosiva vivem em sociedade sob uma certa vantagem. Quem convive ou conhece pessoas que reagem assim, já vive sobreaviso. Precisam ter mais cautela com o que dizem – e como dizem – para alguém que se descontrola facilmente, porque sabe que corre o risco de ter que tapar os ouvidos para os gritos que eventualmente ouvirá e fechar os olhos para não ver os objetos que, muito possivelmente, começarão a voar sobre suas cabeças. Nem vou entrar no mérito da violência física, pois a considero reprovável em qualquer circunstância e não é disso que estamos falando aqui.

Quem lida com pessoas histéricas vive eternamente pisando em ovos, é uma vida difícil. Já para os histéricos, suponho que a vida seja mais fácil porque, além de não reprimirem suas emoções, não são eles que precisam lidar com sua própria histeria. Sempre sobra pra quem tá mais perto e que, além de tudo, precisa relevar e entender que “ela(e) é assim mesmo”.

Contrariando tudo que eu disse até aqui, faço terapia exatamente para aprender a lidar com as minhas emoções e não desejo ser conhecida por qualquer tipo de escândalo ou barraco. Eu fujo dos conflitos como o meu cachorro foge do banho. Mas guardo minhas desconfianças de que talvez eu pudesse ser mais feliz se perdesse o controle de quando em vez.

Bom, nesse caso, talvez fosse preciso que eu esquecesse a educação que meus pais me deram (sim, porque meu pai é um lorde, acredite. Ele é a educação e gentileza em pessoa. A verdade é que ele não passa de um assassino de garrafas térmicas). E para conseguir isso, acho que só morrendo e nascendo de novo. Ou mudando de profissão, entrando no ramo das artes cênicas e torcendo para conseguir um papel dramático de mulher histérica à beira de um ataque de nervos. Porque só assim para receber aplausos no final desse tipo de cena.

Roberta Simoni

3 comentários sobre “Eu queria ser do tipo que berra!

  1. Excelente texto, adorei!
    As vezes também gostaria de gritar, perder o controle, fazer “barraco” mesmo, mas não consigo, não é a minha praia e nem a sua… embora em alguns casos só o grito é que vai solucionar o problema.
    Talvez o silêncio que eu chamo de sabedoria, seja simplesmente repressão…
    Ser humano, bichinho complicado…
    Ri muito…
    Beijos com amor…

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  2. Também me sinto com um dragão feroz interior (sempre a ser domado e mandando para dentro da caverna…). O silêncio exterior das angústias e conflitos que rodopiam nossa mente atuante, ligeira, ativa e extremamente agitada é sempre, ou quase, doloroso. Mas às vezes eu me pego pensando: talvez seja um daqueles prós ou contras de sermos o que somos. Talvez ora valioso, ora cruel. Mas faz ele lentes expertas, que conseguem, por conseguinte disso, enxergar um mundo por uma ótica sensível, conflituosa, intensa. Homens que despejam ódio e emoções em louças, copos, objetos sem vida, carregam o prazer de canalizar suas frustrações em momentos que simulam a perda do problema. Claro, eles não se curam, mas preferem enganar a si mesmos por um momento.
    Nós já não sabemos. Não sabemos enganar a nós mesmas, nem aos nossos problemas, nem à nossa verdadeira paz. Sabemos que a cura provém de outras atitudes…

    Seu texto veio a calhar justo em um momento em que eu me senti exatamente assim. Gritando em vão, a sufocar em um travesseiro que me cala. Praguejando o destino por esse comportamento tão recluso, tão intimista…

    Sem conclusões(quem as possui?), apenas com observações longas, deixo aquela indagação de que “talvez a ignorância seja uma bênção”. E que talvez nós, sensíveis caladas a carregar um mundo nas costas, estejamos um pouco a frente. Um pouco sabidas demais para quebrar copos, berrar aos céus. Sabidas demais para fechar os olhos, abrir a boca e ignorar a alma.

    …E se fosse oferecida a escolha, quem seria tolo de preferir a ignorância no lugar de sabedoria?

    Pois bem.

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  3. Os dois lados da moeda…

    “Já para os histéricos, suponho que a vida seja mais fácil porque, além de não reprimirem suas emoções, não são eles que precisam lidar com sua própria histeria.”

    Bem, trago aqui o outro lado da moeda:
    – Realmente não há tantas emoções reprimidas, mas vomitá-las nem sempre faz com que as angústias sumam. Quem mais sofre com a histeria são os próprios histéricos.

    Entendo que você tenha escrito esse texto no seu espaço pessoal e, ao que parece, fazendo um desabafo sobre a sua própria vida. Mas, como uma possível histérica que fui/sou (e, sim, eu também faço terapia pra saber disso), não podia deixar de comentar aqui: A vida não é mais fácil pra quem é histérico. E mais: quem mais precisa lidar com a histeria são os próprios histéricos. Afinal, só os “outros” podem sair de perto, nós não.

    Parece clichê, mas encontrar o equilíbrio, poder agir das duas maneiras, dependendo da situação, parece ser a melhor maneira de viver. 🙂

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